segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Paixões: a ira

“Não sei o que me deu”, me disse o entrevistado. “De repente, eu estava lá, vendo ela, e logo depois eu já tinha dado nela umas facadas”.

Eu conseguira alcançar o assassino antes de qualquer pessoa, apenas duas horas depois do crime. Ele estava em choque, e simplesmente desabafou com a jornalista. Ele me contou uma história que começara com um bilhete premiado, porque ela era tudo o que ele poderia sonhar e mais ainda; que deu errado exatamente por isso, e ele reconhecia que ele não conseguira mantê-la, não tivera fôlego para acompanhá-la, na sua vitalidade e nas suas ambições. Não havia outro, mas havia todas as outras coisas que a arrastavam para longe dele, e, naquele dia, em que ela disse afinal que ia embora, ele a matou.

Olhava para mim, desesperado, para dizer que não entendia, não podia entender o que fizera; perdera tudo, inclusive ela, e por sua mão. Atônito consigo mesmo, não conseguia sequer pensar em morrer, porque já morrera: viver ou morrer lhe era de todo indiferente, naquele momento. Simplesmente não tinha ação: saíra do local do crime com a faca na mão, atirara-se num canto de quintal e foi nesse canto que eu o encontrei, duas horas depois, e pude entrevistá-lo. Uma entrevista rara, porque feita ainda durante o choque do crime. A palavra escrita a esfriou – sempre acontece isso com os textos jornalísticos, por mais que você se esforce, é impossível retratar a profundidade da emoção alheia – mas a impressão daquele homem perdido me ficou para o resto da vida.

E a paixão: a ira. A raiva insensata, o desmoronar de todos os limites, a explosão interior que arma o braço e fende um corpo. Um momento e outro momento, e entre eles, como disse uma vez Elliot, a sombra.

Esta paixão eclode como um ovo ao amadurecer, de uma só vez e em definitivo, com a imoderação de um nascimento. É a paixão primitiva por excelência, embrião de raiz, vegeta escondida em subterfúgios para descobrir-se numa explosão que ultrapassa todas as razões e domina todos os sentidos, para levar ao irremediável. Porque depois da passagem da ira, nada mais será como antes, e às vezes, restará só o nada, como ao assassino de anos atrás.

É diferente do ódio: este é consciente e construído, montado em razões geralmente falsas, mas razões. O ódio leva à crueldade. A ira, ao gesto impensado, ao irremediável sem razões. É pura emoção agressiva. E, como todas as paixões, sem explicações.

Não sei o que aconteceu com o entrevistado daquele dia. Perdi-lhe o rumo, nos desvãos dos processos judiciários. É possível que tenha seguido sua vida, mas creio que jamais conseguiu entender o que fez naquele dia. Nem jamais conseguiu esquecer a mulher que desceu um degrau social para encontrá-lo, viver com ele e morrer por suas mãos.

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