quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Poderes encolhidos

Tudo começou há muito tempo, mas se tornou visível quando o então poderoso primeiro-ministro soviético, Nikita Krusthchev, tirou o uma banda de sapato do pé e com ela bateu na mesa. A mesa não era uma qualquer: era a de reunião do Conselho de Segurança da ONU. Estava-se na guerra fria, e a hoje extinta URSS era o contrapeso dos EUA. Diz a lenda que, nessa época, ogivas nucleares apontavam para a Sibéria e para o Kansas, simultaneamente, e citava-se muito a frase de Einstein: “Não sei como será a terceira guerra mundial, mas sei como será a quarta: com paus e pedras”.

Nikita bateu com o sapato na mesa, destratando todos os presidentes, primeiros-ministros e diplomatas presentes. Nada aconteceu. O gesto virou folclore de um homem mal-educado e temperamental.

Apenas algumas décadas antes, e haveria uma guerra, mercê dos nacionalismos e ufanismos.

Alguns dias atrás, aconteceu de novo. Cháves apresentou em plenário qualificado, com reis e presidentes, sua intolerância de caudilho diante da oposição, ao criticar o ex-primeiro ministro espanhol. O rei da Espanha explodiu – Porque não te calas? – e nada ocorreu, de novo. Desta vez, nem sequer a reunião foi interrompida.

São quarenta anos, mais ou menos, entre um episódio e outro. Nesse período, a globalização foi avançando e solapando o Estado. O primeiro a ruir foi um Estado que não era país: a URSS de Nikita, e justo por não ser país. Sua sustentação era a convenção de governo. Não resistiu à maré que vai encolhendo progressivamente os poderes do Estado.

Já não é possível governar só, fechar fronteiras e isolar um território. A fronteira do meu país está na tela do meu computador, seja qual for o regime. O Irã fundamentalista censura a internet e a mídia. Hackers driblam eficientemente a censura, e a juventude iraniana consegue acesso a tudo o que quer – inclusive mídia pornô e críticas ao regime.

A teia da ciência e da tecnologia é mais poderosa, porque menos casual. Pesquisadores constituem uma categoria cujo compromisso maior não é com um território ou uma cultura, mas com a humanidade. Hoje eles dispõem de ferramentas que lhes permitem ser uma camada uniforme, distribuída em todo o planeta, integrada e interligada em seus vários sistemas e setores. Nenhuma ditadura consegue detê-los ou silenciá-los: eles têm braços e vozes multiplicados, porque sempre são um grupo espalhado no mundo.

A cada geração, reduz-se mais e mais o poder estatal. Estados ainda são poderosos, e ainda existem territórios onde se quer ser Estado custe o que custar. Mas a Guiana Francesa simplesmente recusou ser um Estado, apesar do governo francês oferecer-lhe a independência de bandeja.

A corrosão vem dos diferentes sistemas que se montaram ao longo do último século. O mais poderoso, com certeza, é o de negócios: o dinheiro galopa através dos países, e talvez já haja, numa senda do Everest, alguma latinha esquecida de bebida isotônica. Seria Coca-Cola, se os guias sherpas a levassem na mochila.

Por um lado, tudo isso assusta; mas, por outro, pode-se quase ter certeza de que Cháves vá ser o último caudilho sul-americano – ele será demolido, como estão sendo os fundamentalistas de todo o mundo, pela impossibilidade de fazer cumprir o que propõe. E que o desejo do rei da Espanha vai acontecer, mais cedo que mais tarde.