terça-feira, 20 de novembro de 2007

O gesto essencial

No “Viver para contar”, memórias de Gabriel García Marquez, conta ele que, em meio à luta incessante contra a miséria, o pai ausente, sua mãe decidiu um dia que ele voltaria à escola. Mas ele não tinha os papéis necessários, e, no dia aprazado, compareceu aos exames de admissão só com a cara e a coragem. Já fora dispensado quando o diretor da escola decidiu examiná-lo assim mesmo e, literalmente, o descobriu.

Foi assim que Gabriel pôde prosseguir seu longo e rude aprendizado para tornar-se o escritor de hoje. Graças a um gesto essencial, em que o educador ultrapassou os limites burocráticos para exercer plenamente a sua tarefa, soube ver, soube compreender e soube fazer o que devia.

Deve ter tido dor-de-cabeça para manter o aluno matriculado, esse diretor sem nenhum outro futuro senão reger uma escola provinciana e pobre. Mas seu gesto garantiu para o mundo o maravilhoso “Amor Nos Tempos do Cólera”, que viria muito tempo depois, possivelmente depois de sua morte. Pois foi este professor que, além de matricular o aluno, o apresentou a Cervantes e ao cavaleiro da triste figura, replicada no rosto feio e na paixão quase impossível do herói do romance.

Chego aqui a uma encruzilhada nesta crônica. Tenho vontade de prosseguir nestes gestos essenciais, derivados diretamente da vocação ou da consciência, sem nenhuma outra compensação que satisfação íntima - de fazer uma boa coisa - que trazem consigo, mas que, na sua singeleza e simplicidade, têm conseqüências extraordinárias. A razão e Jacques Monod (“O Acaso e a Necessidade”), me advertem que essa é uma idéia romântica - mas o romantismo não é parte essencial do prazer de viver? Por isso deixo-me embalar um instante na idéia de Gabriel não seria o que é sem este gesto; e que todos perderíamos um quinhão de beleza se ele não tivesse sido admitido naquele ano e naquela escola.

Mas há um outro caminho para a crônica, e por ele sigo. Trata-se do educador, do professor que vai além do ensino e, sobretudo, de sua burocracia. Daquele que é capaz de vencer as horas do discurso em sala de aula, das provas para passar e corrigir, e consegue ver seus alunos como pessoas que precisam de algo mais que informação consolidada e transmitida. São eles que conseguem ver o verdadeiro talento, distinguir o diligente, disciplinado e estudioso aluno daquele que traz consigo o selo da diferença – e oferecer, para ambos, a oportunidade de crescer.

De quantos educadores disporemos hoje, nessa selva de escolas em regime de massa, em que o importante é despejar na sociedade pessoas mais ou menos instruídas? Um reitor me disse uma vez que o professor, hoje, trabalha acuado, entre o paredão dos alunos que fazem o que querem, e a pressão da produção que o empurra para liquidar rapidamente programas e provas. A escola se reduziu ao ensino – mas quero crer que ainda haja que apresente Cervantes – ou Manuel Bandeira, ou Malba Tahan, ou até Asimov e Jacques Monod - a um garoto de quarto ano que tem por detrás dos olhos a fogueira que pede a lenha do conhecimento.

Quantos, quantos serão capazes deste gesto essencial?

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Carro zero em 80 meses

Os comerciantes dizem que o que interessa para os pobres é a prestação caber no bolso, não o valor dos juros pagos. Por isso, os fianciamentos de longo prazo, caríssimos, são bem sucedidos nesta categoria, porque, totalmente dependente de crédito, paga em dia.

Eu tenho algumas desconfianças desta tese, apesar das demonstrações sucessivas de que ela dá certo nos negócios – o Banco Real até chamou isso de “participação social”, que cínico! – e volto a pensar que o problema maior está na comprovação de renda.

Explico: existe uma multidão de pessoas com um pé no mercado formal e outro no informal, e essa multidão talvez constitua quase toda a chamada classe C; ela engloba ainda boa parte dos profissionais liberais das assim chamadas classes A e B. Uma renda fixa (o pé no mercado formal) e outra variável, sem comprovação alguma (o pé no mercado informal). Não é possível ao cidadão nessa condição demonstrar para uma financiadora que ganha cinco vezes mais do que o seu fixo, graças às empadinhas ou aos contratos (incluindo consultas) sem recibo. Para essa multidão, as opções são, basicamente, duas: ou junta dinheiro e paga à vista, ou vai para o crédito de longo prazo, na comprovação da renda fixa. Há uma terceira opção, que as operadoras de cartão de crédito já perceberam, mas ainda não conseguiram usar todas as possibilidades: o crédito no cartão, concedido pelo volume de gastos feitos pelo cidadão, e ninguém quer saber onde ele arranja dinheiro para pagar.

A renda informal tem muitas vantagens sobre a formal, dado o sistema tributário extremamente injusto e à morosidade da justiça, a que somos todos submetidos. Da renda informal não se paga imposto (o governo retira hoje metade dos ganhos de quem trabalha no mercado formal, em tributos e taxas), não se paga pensão de ex, não se sofre nem se faz cobrança jurídica (a cobrança é no tapa, e às vezes no tiro, mesmo). De desvantagem, tem o fato de ser precária, ou seja: pode cessar, oscilar bruscamente ou se interromper de vez em quando, e não permitir ascensão social – para mudar de patamar social, o cidadão terá que formalizar sua renda, porque a alteração continuada do padrão de vida não será possível sem raízes.

Por tudo isso é que desconfio que, ao expandir os financiamentos de carro para categoria C, no longuíssimo prazo, as financiadoras estão apenas identificando uma renda informal, por detrás da renda formalizada, porque carro não é só o custo original da compra: são impostos anuais, taxas diversas e, sobretudo, custos de combustível e manutenção. Um ou outro irresponsável compraria um carro sem condições de mantê-lo; a maioria, entretanto, não faz isso. Se compra, é para ter e manter. Porque pode.

Por essa e outras razões é que creio que o país seria bem melhor e menos violento se o sistema tributário fosse mais justo, e o Estado, em seus diversos níveis, menos voraz. A redução de impostos é essencial para que as pessoas não tenham que esconder seus ganhos, e também essencial para que as dívidas não sejam cobradas por meios violentos.

Rejeitar a CPMF deveria ser apenas o primeiro passo no rumo da redução geral de tributos, o que todo o país deseja do fundo da alma nacional.