segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Arte, o mistério

Atores disléxicos, pintores sem mãos e um nobel de literatura que confessa, semvergonhamente, que jamais conseguiu dominar a ortografia de sua língua-mãe, tendo necessidade sempre de alguém que lhe corrigisse os erros...

No entanto, quem discutirá a qualidade incrível dessas pessoas? Diz-se que da Vinci era um pintor displicente: dedicava-se mesmo à invenção, particularmente de equipamento bélico. E, no entanto...

Alguém disse uma vez que produzir uma obra de arte leva um por cento de inspiração e o restante, de transpiração. Mas não é verdade. Embora haja necessidade de trabalho, manual ou intelectual, a obra de arte traz um selo específico que a diferencia de todo o resto. Inclusive de suas cópias.

Jamais ninguém conseguiu definir com clareza qual o componente que faz com que entre dezenas de quadros, centenas de livros, milhares de peças teatrais, milhões de músicas, nasça aquela que é, de fato, arte. É impalpável e indizível: alguma coisa secreta e misteriosa que nos faz admirar, mesmo sem entender, mesmo sem ter idéia do que se trata. Uma ponte de sensibilidade na essência do que é humano: e mesmo não gostando da agressividade das cores, você pára diante de Miró.

Nunca antes a produção intelectual da humanidade esteve tão ao alcance das pessoas como hoje. Do lixo ao luxo, a rede de computadores apresenta de tudo. Inclusive um concerto sinfônico com um guitarrista no solo: pura arte, que faria Richard Wagner levantar-se do túmulo para ouvir, conversar e talvez morrer de novo, de pura inveja – porque talvez que a guitarra fosse uma nota faltante para os angustiados violinos da abertura da Tannhäuser.

Ou estará completa uma obra de arte, para sempre? As milhares de interpretações para a Ave-Maria de Bach são, afinal, o que? A melodia é a mesma, mas em torno dela, para além dela, sob ela, a liberdade de fazer transforma, gera outras sensações e efeitos. Serão mais arte para a arte original? E, afinal de contas, o que faz da Ave-Maria de Bach ser tão amada?

Leio as cartas de Clarice Lispector para suas irmãs, lembro Aracy Balabanian dizendo “Meus filhinhas!” e constato que a despreocupação intelectual de Clarice ao escrever para suas queridas não impede o rigor sintático que é uma das faces de seu talento. As cartas não foram escritas para ser literatura, mas são: a síntese narrativa em que se desenvolvem demonstram a cepa de onde vieram. São cartas que falam de trivialidades, e mesmo assim, são incomuns. A diferença, creio, está em Clarice.

Mas apenas creio; arte é ato de fé, sem explicação plausível e racional. Assim, posso crer no que quiser sobre a arte, que não fará a menor diferença. Porque a arte é o maior mistério humano, o abismo das sensações aberto diante de nós, para mergulhar planando e desafiar todos os limites sem conseguir enumerar nenhum.

Nenhum comentário: