segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Por amor

A curiosidade de repórter me leva por caminhos diversos, e costumo me interessar por coisas inusitadas ou simplesmente diferentes – e às vezes por perguntas, ou coisas não completamente entendidas, que ficaram, antigos, na memória, e que hoje, com a rede, descubro que posso eliminá-las.

Assim é que um dia destes entrei no blog da Preta Gil. Eu queria saber o que ela iria dizer das fotos perversas exibindo suas celulites e estrias. Do conteúdo do que li, gostei – uma apaixonada defesa da individualidade, contra a estética oficial padrão. “Eu me amo assim como sou”, diz Preta Gil.

Mas eu gostaria muito que ela amasse a língua portuguesa do jeito com que se ama. Com a mesma paixão. O texto, de conteúdo ardente, fazia arder também a gramática, mesmo para os mais tolerantes. Mesmo que se considere – como eu considero, aliás – que a língua portuguesa passa por um acelerado processo de transformação, e que o “você” há muito tempo deveria estar oficialmente incluído entre os pronomes pessoais do caso reto, entre outras mudanças. E que, mais cedo ou mais tarde, “menos” vai concordar com o substantivo...

O que me pasma é a absoluta despreocupação em relação a fazer-se entender. Para que duas ou mais pessoas se entendam, é preciso haver regras e significados comuns. Escrever corretamente, ou com o mínimo de correção, é essencial para que as pessoas compreendam com clareza o que se quer dizer. Essa despreocupação não é só da Preta Gil, mas de milhares de outras pessoas também. Vendedores, inclusive, que deveriam realizar, por força do ofício, um esforço para se fazer entender bem.

Um bom exemplo disso está no Mercado Livre, onde a linguagem também é livre, desde que sem ofensas e palavrões. Leio um anúncio escrito assim: “queicha na cor begê”. Trata-se de uma estatueta de uma gueixa, vestida na cor bege. Penso que o sujeito talvez até saiba o que está vendendo, mas com certeza não vende, ou vende mal.

No Mercado, oferecem-se “bandeijas”, “tijelas” “mantequeiras”, “leiteras”, “lampeões” e “traveças”. Isto até dá para entender. Mas “ganço” (será um gancho ou um ganso?), sacarolla (era um sacarrolhas) e “galeteiro” (galheteiro) – fica mais difícil. E é quase impossível entender o que se quer dizer com “louça ágata” e “santo sacro”. No primeiro caso, o produto era uma peça de metal esmaltada, que é conhecida como ágata; no segundo, imagens barrocas em medalhões de prata – presumo que “santo sacro” seja o tipo da antiguidade. A displicência permite, também, coisas estranhas como esta: “balança de pesar bebê de farmácia”.

O que pretendo dizer com tudo o que escrevi acima é que o amor pela língua materna é também um amor por si mesmo. Comunicar-se é trafegar num terreno comum de conceitos e convenções, para que as pessoas possam entender o que se diz, e para que a gente possa entender o que as pessoas dizem. Na escrita, em que a entonação da voz e a expressão corporal são omitidas, é vital conhecer esse terreno, ou o amor próprio vai para o espaço – tanto para a Preta Gil como para os vendedores do mercado livre. Não há quem resista ao desentendimento.