terça-feira, 22 de julho de 2008

A ficha suja

Uma discussão nacional nos arraiais jurídicos: deve ou não deve ser publicada a lista dos candidatos com ficha suja, que respondem a processos ainda sem conclusão? De um lado está o direito de informação do eleitor através da publicidade eleitoral. De outro, a presunção de inocência que deve proteger todo aquele que não foi condenado.

O debate repete, em âmbito eleitoral, a discussão penal, em torno daqueles presos “para interrogatório” ou “para averiguações”, principalmente nos casos de crime de colarinho branco, o crime financeiro, em que a arma é o dinheiro.

Que me perdoe a paixão pública, mas o debate é de uma hipocrisia sem par.

Porque o verdadeiro problema não é este: é a falta de justiça.

Perdoem-me também os juízes da Associação dos Magistrados Brasileiros, que assumiram a divulgação da ficha suja, mas eles deveriam começar pelo dever de casa, e botar o Judiciário para funcionar: pensar e resolver os gargalos de prazos e cumprimentos de mandados; reduzir as férias e recessos; condenar, por litigância de má-fé, todos os que apresentaram agravos desertos, recursos absurdos, medidas protelatórias; prender as falsas testemunhas, e punir os advogados que largam o cliente preso na cadeia, porque o dinheiro dele acabou...

Que me perdoem os entusiasmados membros do Ministério Público: comecem também pelo dever de casa, procedendo às denúncias no tempo certo, cumprindo os prazos que manda a lei, e evitando tanta gente presa sem julgamento, com ou sem colarinho branco. Entendam-se com a polícia, ajustem o controle processual, desobstruam o cível, parem de apresentar denúncias ambientais insensatas. E, sobretudo, estejam, se possível, residam nas comarcas do interior deste Brasil, porque sertanejo pode ser um forte, mas há limites e sua fortaleza e no que pode de injustiça suportar.

Ainda me perdoem todos os meus colegas jornalistas, ardorosos defensores do escândalo. Sei eu e sabem vocês que, particularmente nos pequenos municípios, onde existe um cacique de um lado e outro do outro (simplesmente porque há pouca gente para permitir mais opções) a agressão legal, por via da denúncia infundada e da calúnia é extremamente comum. A espada é a de Dâmocles, não é aquela empunhada pela dama vendada: pende por décadas sobre a cabeça do indigitado que, muitas vezes, apenas ousou divergir do chefe de ocasião. Culpados e inocentes estão misturados nesta lista suja: e, só para lembrar, Roma, que exigia reputação impoluta para a mulher de César, admitiu Messalina. Ou seja, política é uma questão de poder – e, por via de conseqüência, deve faltar muita gente nesta lista.

Ora, a Justiça não funciona, dizem vocês. É verdade, e o Estado brasileiro – União, Estados e Municípios – se beneficiam diretamente disso. Tente receber de volta imposto retido indevidamente, ou as diferenças que a União confessou dever, na Previdência. São anos a fio. E disso não foge nenhuma das Justiças ditas “rápidas”: os processos nos juizados especiais duram, em média, cinco anos.

Ora, nós cumprimos a lei, dizem os juízes e procuradores públicos. Essa atitude, cômoda e liberal – “a culpa é dos outros” – está equivocada e ultrapassada. “Cumprir a lei” é, antes de tudo, dar-lhe eficiência; eficiência que o Judiciário não tem, e para a qual a lista suja é apenas um atestado de paralisia, modorra e indiferença para com os inocentes.

Porque o importante, mesmo, não é o culpado, é o inocente: é este que esteve nos porões da ditadura, é este que está nas celas imundas, é este que é apontado a dedo, é este que sofre a execração da opinião pública, o que mais paga pela hipocrisia. Paga com pedaços de vida – e este é um preço alto demais por uma lista.