sábado, 13 de setembro de 2008

Waldick, a marca

Eu não me dera conta o quanto Waldick, Nelson Gonçalves, Luiz Gonzaga, Angela Maria, Jackson do Pandeiro, e outros desses estavam presentes na minha vida até descobrir, de repente, que todas as músicas que sabia de cor sem ter decorado deliberadamente a letra eram aquelas cantadas por essas pessoas.
Essas foram as músicas da minha infância e pré-adolescência, ouvidas nas rádios e nos alto-falantes das esquinas. Decorei por ouvir, ouvir e ouvir, porque todos os discos de vinyl que comprei, a partir dos quinze, dezesseis anos, passavam muito longe deles.
E aí fiquei pensando o quanto essas pessoas – essas músicas, esse estilo de cantar – influenciaram minha vida e meus gostos e desgostos.
E o quanto elas foram – ainda são – importantes.
Eu não gosto nem gostava do Waldick, sua voz de aguda e, para mim, desagradável. Nunca decorei o “cachorro não” – já não ouvia tanto os alto-falantes. Mas “Quem eu quero não me quer” – impossível não repetir mentalmente a música enquanto escrevo este texto.
Uma outra música, gravada pelo Waldick, chega até mim na voz de outro cantor, este latino: “Perfume de Gardênia”. Eu nunca vi uma gardênia, e acredito que a maioria das pessoas desta Belém do Pará, também não. A gardênia era mexicana, não sei o cantor, mas o perfume de gardênia me adverte sobre a poderosa influência da música hispânica nesta região – da salsa ao bolero, e letras inteiras em espanhol me afluem, como “cierta vez un ruiseñor”, ou vereda tropical.
Mas, neste mesmo momento, estou ouvindo música sertaneja, exatamente da mesma maneira com que ouvia Waldick. À revelia, porque ninguém obedece a posturas públicas nesta cidade e os bares, casas noturnas e que tais fazem o barulho que querem, do jeito que entendem, e acabo de descobrir que era assim quando eu era menina, também. A música entra ouvidos a dentro, chateia, mas fica. Mais dia, menos dia, acaba-se decorando uma letra indesejada.
Há que tolerar? Ou tenho direito de não ouvir? Se eu colocasse meu som, com toda a potência do subwoofer, com o dueto de Siegfried, seriam os apreciadores da música sertaneja obrigados a tolerar? Ou não?
E até onde isso contamina o gosto e a estética? Meus filhos riem-se quando olham alguns de meus discos: Nelson Gonçalves, Jamelão, Gregorio Barrios... E, exceto Jamelão, cuja voz, quando jovem, era de uma pureza excepcional, nem eu mesma sei porque às vezes ainda ouço. Creio que um vírus antigo, inoculado pelos alto-falantes e pelos rádios, quando eu era menina. Sei as letras, e isso é algo íntimo, conhecido, terreno seguro – mas essas letras sempre me levam a um conflito, porque, em sua maioria, são horrorosas, em suas músicas em duas escalas e harmonias simples. Muitas, eu gostaria de esquecer – mas não posso. Afinal, durante anos e anos e anos eu ouvi “Minha mãezinha querida / mãezinha do coração”, coisa que detestava mesmo aos dez anos de idade, mas que ficou em minha memória como uma marca, mas de que?
Agora o Waldick morreu, e eu sou obrigada a reconhecer que ele esteve presente em minha vida, sem que eu percebesse sequer, mais do que eu supunha, e muito, muito mais, do que eu gostaria que tivesse estado. Muito mais do que esteve o outro ilustre morto do mês, o Fernando Torres.
A morte dele me leva a constatar que Chitãozinho e Xororó, Leandro (ou Leonardo?), Daniel e outros semelhantes hoje estão presentes na minha vida muito mais que os cantores que eu curto de verdade. Eu ouço as imitações destas figuras quatro vezes por semana, algumas horas por dia, graças ao desgoverno desta cidade – enquanto só pude ouvir “St. James Infirmery” uma única vez, nos últimos dois meses...
Porque também este som descarado impede que a gente ouça o que gosta. Ópera e jazz são como champanha, dificilmente alguém, por mais tiete que seja, aguenta uma dose às dez da manhã; a música romântica, clássica ou popular, pede o frescor noturno – 35 graus de calor são incompatíveis com Pixinguinha; e a alucinação do rock – Hendrix, Floyd, Malmsteen – exige que você já tenha acabado o trabalho do dia, para poder mergulhar na emoção.
Waldick, o cabotino, me marcou e eu nem sabia. Estou danada com isso.