segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Eloá

A garota está morta, e o namorado – bem, o namorado está de cara inchada de tanto apanhar. Mas o repórter, o apresentador – ninguém fala nisso.
Durante e depois do caso, pessoas escreviam nos chats e comentavam na rua: “porque a polícia não usa um atirador de elite e mata ele logo?”
Essa pergunta é reveladora. Matar logo. Está ameaçando, deve ser morto. Mas deve?
Todas as pesquisas de opinião já feitas no Brasil são contra a pena de morte. Mas as pessoas pedem morte para criminosos – bandidos ou, como o rapaz, um criminoso eventual – com naturalidade: “porque a polícia não mata logo?”
Circula na rede um conjunto de slides chamado “sequestro na China”, em que um “negociador” mata um sequestrador a sangue frio. Os comentários são entusiasmados.
Outras perguntas e afirmações: “cadê os direitos humanos da garota?”; “agora, o pessoal dos direitos humanos vai proteger o assassino”. “Cara inchada é pouco. Deviam era dar muito nele”.
Pena de morte após um processo judicial regular, não pode; a polícia matar, pode. O que existe por detrás dessa ambivalência?
Eu não tenho muitas ilusões sobre a nobreza do ser humano, mas acredito que ninguém quer voltar à barbárie. Então vou tratar dessas perguntas – e da cara inchada do rapaz.
A primeira confusão é quanto “ao pessoal dos direitos humanos”.
O principal antagonista deste “pessoal” é uma certa quantidade de policiais que acha simples e fácil justificar o que não faz culpando “esse pessoal”. Um dia destes, uma amiga minha sofreu um seqüestro relâmpago e, como sempre, a polícia acabou prendendo o menor “laranja”. O delegado mandou as vítimas (eram duas) procederem à identificação do preso cara a cara com ele; fez com que o menor fosse espancado; depois, despachou todos para a delegacia da criança e do adolescente, dizendo que “vou mandar, mas não vai adiantar, porque tem uma juíza aí que vive passando a mão na cabeça desses pivetes”. Agora vamos ver o que o delegado tinha por obrigação fazer e não fez:
- ele não fez periciar o local do crime, nem o automóvel, nem os óculos que um dos ladrões deixou cair; aliás, ele sequer foi ao local;
- ele não relacionou testemunhas – havia mais de dez – para o inquérito;
- ele não ofereceu às vítimas o banco de imagens, para identificação dos bandidos adultos;
- ele não protegeu as vítimas de uma desforra futura, mas obrigou-as à situação de constrangimento;
- ele não mandou fazer e nem fez qualquer busca na sua jurisdição.
A culpa é da juíza que apenas quer que se cumpra a lei relativa aos menores? Quando um policial bate, ou manda bater num detido ou preso, está-se nivelando a ele, está respondendo com simples violência a violência cometida. Não há satisfação justa para a vítima, nisso: há, tão somente, barbárie. E nenhum trabalho profissional, policial. Saem da delegacia a vítima e o criminoso, mandados para outro lugar: pronto, livrou-se desses. Se os bandidos fossem presos, não haveria prova alguma contra eles, a não ser o depoimento das vítimas – que poderiam ou não identificá-los, porque o trauma de um seqüestro impede segurança na identificação. E isto graças à atuação do delegado – e não ao “pessoal dos direitos humanos”.
A segunda confusão é quanto a “atirador de elite”. Um tiro de precisão é algo tão difícil que, nas Olimpíadas, nos campeonatos de tiro ao alvo – com tranqüilidade, tempo para ajustar a mira, armas perfeitas, alvo delimitado, imóvel e perfeitamente visível – são raríssimos os campeões que conseguem os pontos máximos, ou seja, acertar na mosca em todos os tiros. Imagine-se numa situação de seqüestro, com o alvo movendo-se num local pouco iluminado e em condições de extrema tensão! A probabilidade de errar o alvo é alta demais para justificar o risco.
A terceira questão é quanto ao “mata ele, logo”. Afinal de contas, nós queremos uma polícia feita de assassinos a sangue frio? E para que? É bom lembrar que todo o excesso de poder conferido ao Estado, ou aos órgãos do Estado – entre os quais a polícia – volta-se contra quem o concedeu. Desde os tempos da guarda pretoriana de César – a primeira polícia organizada de que se tem notícia histórica. Polícia com ordem de matar acaba matando indiscriminadamente. Afinal, policial também erra – como qualquer um que não tenha nenhum controle sobre si.
A quarta questão é quanto aos direitos humanos da vítima. Será que ninguém vê que ela teve seus direitos violados pelo bandido, e não pela polícia? e que não é violando mais direitos humanos que se corrige a primeira violação? e que se a polícia fizer o que o bandido faz, está se igualando a ele, e deixando de ser um instrumento de justiça?
Matar e bater não resolve nada. Matar e bater somente piora tudo. Por acaso a cara inchada do rapaz vai suprir a falta de Eloá? Consolo teve a família, com certeza, com o bem que se gerou da morte da moça, com os transplantes de seus órgãos – nunca, com a cara inchada que a polícia ofereceu ao vídeo. Uma mãe transtornada pode até sentir-se melhor depois de bater, porque extravasou sua raiva; mas um espancamento feito por terceiro não fará com que se sinta melhor.
A quinta questão é quanto ao silêncio. Ele é cúmplice, e os jornalistas que exibem vídeos com um preso de cara inchada, sem comentários, alegando a pressão da opinião pública, tornam-se cúmplices da violência, e ajudam a piorar tudo.