sexta-feira, 6 de março de 2009

Excessos

Um dia destes fui a um prédio comercial. Na portaria, catracas. Na recepção, uma moça gentil me pediu a identidade, começou a preencher uma ficha e me apontou uma câmera. Foto, para que? para cadastro de segurança.
Eu disse a ela que bandido é que tem ficha de segurança. E nada neste mundo ia me fazer tirar uma fotografia para uma ficha de segurança na portaria de um edifício. Claro que não entrei. Perdi a consulta, troquei de profissional, porque também não vou me consultar com um profissional que aceita que seus clientes façam ficha de segurança.
A medida, apresentada ao condomínio por uma empresa de segurança, diz que visa proteger as pessoas que trabalham no prédio. Eu me pergunto, de que? Nenhum assaltante vai ser impedido por uma catraca ou por uma ficha; saber quem é o assassino não devolve a vida de ninguém. Para mim, é um excesso, oriundo de certos setores da segurança – tanto pública, como privada, diga-se de passagem – de um perfil que nos faz duvidar da sanidade do que propõem. Eles nivelam por baixo: todos são suspeitos. Desrespeitam, com a maior tranquilidade, a privacidade alheia: são fanáticos com câmeras escondidas e microfones ocultos. Envolvem muros em cercas elétricas – de efeito tão duvidoso como a ficha de segurança – e colocam em risco, sem o menor remorso, quaisquer pessoas.
Naquele edifício das fichas ninguém se perguntou – ou investigou – quem é que manipula essas fichas. Quem é que está dentro de um uniforme de empresa de segurança; para onde vai este cadastro, ou, pelo menos, se o computador é à prova de hackers. Qual o grau de segurança da própria empresa que diz fornecer segurança. Comem um bolo comprado pronto, exatamente como fazem com um sanduíche na padaria da esquina.
Esquecem que os aparatos de segurança são restritivos, e quanto mais eles são instalados, mas se cerceia a liberdade, e mais a privacidade de cada um vai sendo invadida. Com um agravante: se alguém, seja quem for, sabe muito sobre você – seus hábitos, seus amigos, seus conhecidos e sua família – os riscos são maiores. Esses crédulos não conseguem ver pessoas dentro das fardas (e as empresas de segurança sabem muito bem que o uniforme torna impessoal quem o usa) e atribuem às fardas e uniformes a condição de infalíveis, ou incorruptíveis. Só que isso não existe.
A ficha de segurança do edifício é uma miragem. Pode até excluir indesejáveis – com certeza, afasta clientes que, como eu, não aceitam ser tratados como suspeitos – mas não será ela que evitará o crime.
O crime recrudesce porque existe, de fato, uma demanda por bens de consumo – seja alimento, seja instrução, seja tevê de plasma, seja tênis de grife – que não é atendida; e porque há uma cultura de impunidade, seja para o crime de colarinho branco – a corrupção nas diferentes esferas de governo – seja para o pequeno furto; do crime ambiental à infração de trânsito. Isso faz com que tomar seja mais fácil que comprar; o risco em tomar foi reduzido, graças ao emperramento do Judiciário, e, se uma pessoa está disposta a correr o risco, vai em frente. Essa é uma das razões pelas quais as prisões estão cheias de homens jovens: eles, que foram soldados saqueadores nos tempos de guerra, para a qual iam para morrer ou fazer fortuna, correm o risco.
E é também por essa razão, entre outras, que a ficha da portaria do edifício pode intimidar o cidadão, mas não intimidará o criminoso. Ela é apenas um dos muitos excessos em torno da questão de segurança.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Burocracia centenária

A jovem senhora olhou para mim como quem está insultada e diz:
- Ah, mas vai ter que esperar, sim! Afinal de contas, isto é uma repartição pública!
O estupor me impediu qualquer resposta, e a raiva que se seguiu era absolutamente inútil. Desde que entrara naquela repartição municipal que eu vinha acumulando irritação, mas a frase da jovem senhora me mostrou que qualquer reclamação bateria em cheio numa muralha de indiferença. Pior: na firme e enraizada crença de que o usuário do serviço público é um transtorno, e que todos, absolutamente todos os que entram numa repartição são suspeitos.
A coisa começara no protocolo. Apresentei o documento, pediram cópia da minha identidade. Para que?, perguntei. Para anexar na petição, responderam. Sim, e...? São ordens, me disseram. Eu disse que não ia tirar xerox nem anexar cópia alguma pela simples razão de que qualquer pessoa, com identidade ou sem, pode peticionar em qualquer protocolo. E a obrigação do protocolo é receber o documento – ou teria que obrigá-los?
De nariz torcido, a funcionária cheia de curvas nos lugares errados recebeu e carimbou o papel. O que me levou a crer que essa história de identidade é simples adiamento do trabalho – aplicando-se a consagrada técnica de matar o cliente pelo cansaço.
Há quatro meses ando em busca do dito papel, igual aos mendigos de Istambul: atrás de mim, uma corrente de latidos: ao... ao... ao... O último “ao” já me comunicou que é só mais um da série; e não adianta discutir.
Este último “ao” é um jovem e guapo mancebo. Sua mesa está vazia, e era o meio da manhã. Ele não sabe o que reivindico, porque não se deu ao trabalho de ler o documento que passou em suas mãos. Tenho a nítida sensação de que sou indesejada. Aí, discuto, no meio do corredor. Uma discussão em voz alta no meio de uma repartição pública é sempre um bom cartucho; haverá falatório, porque o tédio da papelada faz de qualquer incidente assunto para uma longa conversa de dois funcionários, mesmo que haja filas no guichê em frente. Uma dúzia de rostos converge para nós, interessados na fofoca. Eu falo alto, faço-me mais surda que sou, para obrigá-lo a falar alto também.
Estou com raiva, mas ao olhar um cartaz na porta da repartição, falando em atendimento cidadão, um enorme cansaço me toma inteira. À frente do cartaz, pessoas igualmente cansadas baixam a cabeça e esperam, os papéis pendurados entre os dedos. Ou melhor: seus direitos pendurados entre os dedos, inúteis diante da indiferença.
Lá dentro, vi duas novas funcionárias sem mesa, sentadas em cadeiras, esperando acho que o final do mês; uma mesa vazia, ocupada por uma senhora que lidera um animado bate-papo com dois homens – todos, funcionários sem fazer nada. Penso que um terço de tudo o que consigo ganhar vai alimentar esse ócio burocrático. E penso que chegamos a uma distorção que será muito difícil corrigir.
Daí me lembrei de Machado de Assis e seu Brás Cubas. Mais de cem anos, e nada mudou. As repartições continuam repartidas; a burocracia manuscrita tornou-se eletrônica, mas continua o mesmo dinossauro, crescendo ano após ano. E, seja imperador ou presidente, governador de Estado ou de Província, há sempre gente demais e trabalho de menos. Quanto ao cliente, usuário, ou que nome tenha – até cidadão – é apenas um detalhe, geralmente incômodo. Pronto para ser despachado para Istambul.