sábado, 21 de março de 2009

Menos, Dráuzio!

Li a carta aberta de Dráuzio Varella – e como eu gostaria de ter tantas certezas!

Primeiro, a certeza da ciência, la mobile donna. Esta senhora é tão volúvel! Mendel, por exemplo: durante anos a fio, isolado num mosteiro, cuidando dos jardins e fazendo pesquisas. Num mosteiro, sabe? Ele era um monge agostiniano. A inteligência médica da época abominava suas descobertas. Ele apresentou seus trabalhos; foi ignorado. Morreu em 1884, mas só no início do século XX que a inteligência médica finalmente compreendeu as leis do que se tornou moda, e hoje provoca a polêmica das células-tronco: a genética.

No século XIX, o que se aceitava como certeza médica científica passava muito longe das teorias desenvolvidas por Freud, durante todo o século, e até hoje polêmicas. Trabalhou-se a eugenia na Europa e nos Estados Unidos – o que é cuidadosamente oculto, hoje, depois que a segunda guerra mundial demonstrou, com os horrores dos campos de concentração, até onde se pode chegar na busca pelo indivíduo humano sem defeitos. São terríveis dos relatos de lobotomia praticada por médicos na “cura” de criminosos julgados casos perdidos; e são terríveis, também, os relatos das experiências realizadas com presos perpétuos nos Estados Unidos.

Ah, mobile donna!

Segundo, a certeza do compromisso médico com o alívio da dor. Não vamos longe. Brasil, anos de chumbo. Havia médicos nas salas de tortura, sim, senhor. Página negra? É, sim. Mas eles não fizeram nem mais, nem menos, do que seguir uma trilha sombria e obscura que vem desde o início dos tempos, acompanhando guerreiros, torturadores, violências. Essa trilha é bem pouco conhecida; é uma trilha que todos gostam de esquecer que existe e é mantida aberta até hoje – em Guantánamo, por exemplo.

Terceiro, a certeza de uma cosmovisão antagônica, entre o cristianismo – ou, mais especificamente, o catolicismo – e a medicina. Oh-ho, como cantaria Siegfried. Sem sair do Brasil: foram os católicos, à sombra da Igreja, com suas Pias Obras, que construíram os primeiros, os segundos e os terceiros hospitais por aqui. Era o bispo – não a autoridade pública, colonial ou imperial – quem abria hospitais, cuidados pelas ordens religiosas, mantidos pelas contribuições de caridade. Hoje o Brasil tem seu SUS – e grande parte dele ainda é operado por ordens religiosas católicas. Justo onde existe maior pobreza, onde não chega o braço secular do Estado – onde se precisa de mais que um salário para poder suportar a dificuldade. Isso não seria possível se houvesse uma cosmovisão antagônica; resignar-se à dor e à morte não é a mesma coisa que incentivá-la. É preciso um sentido para o sofrimento, para que ele se torne suportável.

Quarto, a certeza de que a manipulação da vida intra-uterina é indispensável. Ah, como eu queria ter certeza disso, do sim ou do não, límpido e claro! Aborto, por exemplo. Vejo defesas e condenações apaixonadas, mas nunca li nada sobre as consequências do aborto no organismo da mulher que o faz. Porque deve ter – é como capotar um carro, ou frear um trem em alta velocidade, porque todo o organismo se mobilizou para a gestação. O que, de fato, acontece no aborto?

A insegurança da camisinha e da pílula – porque a pílula tem uma margem de insegurança, embora nunca ninguém toque no assunto – estão levando os jovens africanos, nos países onde a AIDS é epidêmica, a adotar os princípios – tão católicos, por sinal! – da monogamia e do auto-controle sexual. É só ver os relatórios da OMS. E esses jovens nem são católicos...

O poder clerical pode ser grande, mas tem suas raízes nas dúvidas de pessoas como eu. E é por isso que interfere no social - até porque o poder político deriva exatamente do grau de aceitação da liderança. A excomunhão que o bispo fez pode ter sido fora de lugar, escandalosa, errada ou o que for – mas repousa nessas incertezas.

Por isso – menos, Dráuzio! Proteste, se acha que deve, mas dê o seu a seu dono; nem
os médicos são tão mocinhos, nem a igreja católica é tão bandida. Lá como cá, feras há.

segunda-feira, 16 de março de 2009

O dinheiro na cueca

Nesta sexta, 13, um chinês foi preso transportando 300 mil na cueca.
O que me fez lembrar o outro dinheiro na cueca – aquele do PT, e perguntar: em que deu aquilo tudo?
Foi em 2005. Três anos depois, foi preso um dos réus no caso do mensalão, também com dinheiro na cueca. Logo depois, um traficante com mais de um milhão. Em seguida, um sequestrador, que trazia as notas marcadas de um resgate – 14 mil. Agora, esse chinês, que ninguém sabe direito porque tinha a cueca cheia de grana.
Exceto o último, todos foram denunciados pelo Ministério Público Federal.
Em 2007 uma comissão do Congresso aprovava emenda à lei contra a lavagem do dinheiro enquadrando o dinheiro na cueca como crime.
Dei uma busca: todos os processos ainda se encontram em primeira instância, nenhum foi julgado. Os recursos sobem e descem dos tribunais, apenas para que se comece o julgamento.
Pois bem. Transcrevo uma das informações que encontrei:
“Uma empresa especializada em material de defesa/espionagem colocou no mercado a “Brief Safe”, uma cueca com bolso de velcro e “marcas de freiada” pré-impressas. O objetivo é guardar seus bens mais valiosos (se bem que isso toda cueca faz) à vista de todos.” O lançamento é de 2007. A empresa é a Shomer Tec., que vende, também, uma caneta de tinta fantasma com selo da KGB. Cada cueca custa 11 dólares.
É fácil culpar o Judiciário e o sistema de recursos e contra-recursos que eterniza os processos civis ou penais brasileiros. Mas a questão fundamental é outra: todos se queixam do Judiciário mas ninguém faz nada para consertar o estrago.
Porque a sociedade não quer, nem o Estado. Um sociólogo ou um economista poderiam explicar essa situação como característica de países emergentes: o dinheiro ilegal pesa muito no PIB para ter um combate sério. É como a questão dos temporários: se os parafusos forem apertados demais, a máquina explode.
Eu me consolo lendo algumas coisas antigas. No momento, a história dos bucaneiros do Caribe, no século XVII. A descrição das condições de vida dos colonizadores ilhéus (Cuba, Tortuga, Trinidad, Tobago, Hispaniola – hoje Haiti e República Dominicana) é de arrepiar. Mas o que mais me chama atenção é a existência de investidores por detrás dos capitães piratas, e governadores que investiam no ramo ou compravam, para revender, produtos de saque. Àquela época, não havia cueca que comportasse o dinheiro – era todo em moedas, e a própria cueca ainda não existia – e, talvez por isso, a forma de desviar a prata real era muito mais violenta.
As coisas se suavizaram em meio milênio – pelo menos podemos nos proteger em casa, e não no oco de árvores.
Mas as ameaças continuam as mesmas: a penúria ainda é um fantasma persistente, já não mais na forma de navios com caveiras e ossos cruzados, mas agora em forma de assinaturas eletrônicas. Não se morre com freqüência de exaustão física, mas, agora, de exaustão moral: o suicídio já é, no Brasil, a terceira maior causa de morte de jovens, perdendo apenas para os homicídios e acidentes de trânsito.
A sensação que tenho é que navegamos muito – ciência, tecnologia, medicina de massa – mas o fundamental, que é o respeito mútuo, ainda está tão atrasado como antes.
E as cuecas testemunham isso.