terça-feira, 1 de março de 2011

Benedito Nunes

Fui sua aluna, e ele me ensinou a pensar.

Sua tolerância com a tolice me intrigava. Depois compreendi: saber-se humano é também saber-se um quase nada. Se a dimensão do tempo nos esmaga, a consciência do conhecimento nos coloca no tamanho exato do que somos e demonstra que o degrau que separa os inteligentes dos tolos, os eruditos dos iletrados é um fio de cabelo.

Sua paixão pelo cinema também me intrigava. Eu jamais consegui me deixar envolver por um filme – simplesmente por saber que, em torno de qualquer cena, há sempre um grupo grande de pessoas. Entendi, mais adiante, que sua paixão pelo cinema era um pouco a ausência do teatro na sua vida, e muito, a expectativa do criado ou do recriado, do novo. Passei a ler os filmes à moda Bené – mas fiquei muito longe na leitura. Faltaram-me boa vontade e paciência.

De sua vida, um episódio me serviu de referência para muita coisa. Foi quando o nome da rua em que ele morava foi mudado. Benedito lutou ferozmente até conseguir manter seu endereço. Com CEP ou não, sua casa continuou na travessa da Estrela, que existe só naquele trechinho de dez metros, com um único morador. Ele me explicou que não mudaria de endereço, depois de décadas de correspondência e referências. Conquistara aquele endereço; não seria um Correio que iria tomar dele.

Foi a mais importante aula de exercício de cidadania que tive.

Benedito conseguia que as pessoas se esquecessem facilmente de sua estatura intelectual e, frequentemente, surpreendia mesmo seus pares: de repente, palavras inesquecíveis lhe escapavam da boca, com a naturalidade de quem fala abobrinha. Um lampejo de quem escora a sua sabedoria na sabedoria humana, e não faz mistério disso. Era simples, e, ao mesmo tempo, extraordinário – tal como as linhas puras da boa arquitetura, aquela que resiste ao tempo e a todos os modismos, e consegue que mesmo alguém completamente brega fique boquiaberto de admiração.

Esse brilho ocasional, esses instantes de pensamento límpido, esses relâmpagos de inteligência não serão repetidos mais, para sempre. Como ele ensinou, na primeira aula que tive com ele: a morte é uma situação limite. É inexplicável, e para além dela, somente a imaginação.

E é esta que nos consola, e o consolava, nos voos cinematográficos em que ele fazia questão de embarcar. Faz-nos crer, sem base alguma, que suas palavras não escritas serão perpetuadas da memória de uns para a memória de outros: e não é isso a imortalidade? A essência do homem que se foi, preservada para compor a essência do homem que virá?

Há seus livros, é verdade, sua contribuição para a filosofia e para a arte. Mas livros são interpretáveis. À pergunta tão comum nos exercícios estudantis: o que o autor queria dizer com isto? – haverá, sempre, múltiplas respostas. Já não haverá mais a do autor. Seu pensamento dependerá de intermediários para ser compreendido. Ninguém mais poderá ter a experiência única de perceber o incompreensível e admiti-lo – nenhuma palavra escrita pode reviver esses momentos de que Benedito era tão rico.

E eu nem posso dizer que gostaria que ele ficasse para sempre entre nós, porque ele riria na minha cara dizendo que a entropia é uma bênção da natureza. E, claro, teria toda razão. Mas que eu gostaria, gostaria.