sábado, 22 de setembro de 2012

Sorriso amarelo

A semana abriu um enorme sorriso amarelo sobre o país. Ao contrário do que ocorre normalmente com esse tipo de expressão, o sorriso amarelo provocou risos verdadeiros nas pessoas. É que, finalmente, pessoas importantes estão sendo condenadas e, embora muita gente ainda não acredite que vá ver a gangue nas penitenciárias, pelo menos já se pode chamar de ladrão quem o foi, sem ter que responder a processo de calúnia. Compõem o sorriso amarelo as desculpas esfarrapadas que apareceram aqui e ali, a propósito do julgamento que sem dúvida irá para os livros de História do Brasil como um divisor de águas na democracia nacional.
A primeira desculpa vem do Planalto, na tentativa desastrada de Dilma Rousseff em explicar que sua surpresa com a aprovação rapidíssima do plano regulatório de energia, quando ainda ministra de Minas e Energia. Ela não esperava que o Congresso Nacional compreendesse o tamanho da crise, é isso! Ao tentar se afastar dos estilhaços do mensalão, a presidente deprecia o Congresso inteiro... e não convence ninguém. No depoimento, ao se dizer surpresa, Dilma lavou as mãos do que acontecia na Casa Civil; agora, não pode recolher sabonete e toalha – ela entregou, sim, os Josés, tanto o Dirceu e como o Genoíno, às feras. Mas não se pode esquecer que ela recebeu um benefício direto do mensalão: foi graças à surpreendente rapidez do Congresso em aprovar o marco regulatório que foi possível ela ser apresentada ao país como a ministra que resolveu o problema do abastecimento de energia para o parque industrial do Sudeste, antes que houvesse um colapso.
Outra desculpa vem dos partidos que, junto com o PT, assinaram uma ridícula nota acusando os opositores de golpismo. A manobra é velha, recomendada por Maquiavel há algumas centenas de anos: use o temor, intimide com a fogueira maior para desviar a fogueira menor. O ridículo atual é que as inquietações da população estão muito, muito distantes de ver tropas na rua garantindo novos donos do poder. As eleições não estão pegando fogo: excetuando-se alguns episódios isolados, elas estão tão mornas que, em todas as pesquisas publicadas nas capitais, cerca de um quarto do eleitorado ainda nem decidiu em quem vai votar. Essa mornitude decorre da tranquilidade de um bom momento econômico – o que é ótimo para todos. Quem pensa em golpe quando as coisas vão bem? Só os que vão mal – no caso os partidos signatários da nota, que precisam explicar aos patrocinadores uma possível derrota eleitoral que se avizinha.
De Minas Gerais vem o chororô dos condenados. Com desculpas: Valério, que diz que sabe mas não diz o que sabe, vestindo-se de vítima no altar dos sacrifícios da lealdade; seu sócio, alegando que “emprestou a empresa para um empréstimo de Valério”. E a defesa dos réus, alegando que os empréstimos foram tomados para fraudar a legislação eleitoral. São crimes: calar para omitir provas em processo penal; usar informações falsas para obter empréstimos bancários; e fazer caixa 2 em campanha. Então são confissões criminosas para encobrir outros crimes, sendo que, se aceitas as alegações, todos os crimes confessados estão prescritos... Quem é que vai acreditar nisso aí? Mesmo o menos instruído dos brasileiros entende que, por trás de uma defesa furada, quando apresentada e aceita, está o poder do dinheiro. E aí a desculpa se esfarrapa na cara de pau dos criminosos.
E o Supremo ainda nem chegou nos Josés...
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PS: Eu tenho me divertido muito vendo, na propaganda eleitoral para a Prefeitura de Belém, o PT fazendo ingentes esforços para demonstrar que a primeira administração de Edmilson foi petista. O candidato do PSOL, que no seu primeiro mandato tentou trocar para vermelho as cores da Prefeitura e fez construir uma estrela petista na orla de Icoaraci, não está nem aí: infiel ao PT como foi, estimula novas infidelidades na base concorrente com o à vontade de um príncipe do Tucunduba. Ele não gosta de lembrar que Ana Júlia foi sua vice, e, em algum lugar do passado, garantiu para ele a maioria na Câmara. Agora é outra mulher, a Marinor, que puxa a legenda (ou a carroça de votos) para tentar conseguir um mínimo de viabilidade política no caso da fórmula dar certo de novo...

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A revolta das belas

Não, eu não vou tratar de cachoeira ou mensalão. Depois deste longo intervalo, em que tive que dar contas de compromissos absorventes, prefiro escrever sobre elas. As belas.
Primeiro foi na Bahia. De biquíni e salto alto, as belas ocuparam um trecho do Pelourinho para dizer, alto e bom som, que transexual em concurso de beleza é covardia. Mulher é mulher, homem é homem e transexual, que no caso é uma mulher que já foi homem, não tem bumbum à altura de um concurso de beleza. Seus argumentos foram reforçados pelo que o fio dental não encobre. O protesto pode não ter conseguido seu objetivo – e, de fato, não mudou o resultado – mas levantou uma lebre difícil de apanhar: há ou não necessidade de reconhecer o intervalo entre os gêneros? A fisiologia não deixa margens de dúvida, mas a psicologia... ah, a psicologia permite todas as variações possíveis. As belas querem definições e respostas. E, se hoje se trata de um concurso de beleza, isto é só a ponta da montanha submersa. Cada vez que entra na água, o mergulhador poderá deslizar nas encostas de competição em que se disputa a beleza, e as belas não estão nem um pouquinho dispostas a encarar a concorrência que nasce da ponta de um bisturi.
Na semana seguinte, aconteceu no Rio. Desta vez, contra uma mineira que, mineiramente, ganhou o Miss Rio de Janeiro. Sob vaias, em prantos, recebeu a coroa com as carioquíssimas candidatas voltando-lhe as costas. A maquiagem era à prova d’água, não borrou. As competidoras alegaram concorrência desleal. Afinal, se é Miss Rio tem que ser carioca, segundo elas. E usaram o mesmo argumento das baianas: aqui não falta mulher bonita! Não é preciso procurar em outro lugar!
Saindo das passarelas, as belas tiram a roupa na rua para outros protestos, mais políticos. Vindas da Ucrânia, elas mostram os seios para defender a decência nas contas públicas ou no tratamento com os animais. Desenvolvem performances contra o programa nuclear e contra o mais antigo problema social do gênero feminino: a agressão sexual, quer por meio do estupro, quer por meio da prostituição.
Nisto, juntam-se a milhares de outras mulheres, não tão belas, mas igualmente dispostas a usar livremente os dotes genéticos que receberam: com ou sem sutiã, vestidas ou desvestidas, com as caras manchadas ou maquiadas, reúnem-se nas Marchas das Vadias pelo mundo afora, de preferência com pouca roupa ou lingerie, para combater o sexo forçado, inclusive o da intimidade dos casados. “Eles nos chamam de vadias se aceitamos ou se recusamos”, explicam as líderes. “Então precisam aprender a respeitar as vadias”.
Coisa que se sabe há milhares de anos, por força das histórias de Dalila, a filisteia que deixou Sansão sem forças, e de Judith, que fez o rei assírio Holofernes perder a cabeça, primeiro com fulminantes olhares, depois com um golpe de espada no pescoço.
Mas entre saber e aprender há uma distância enorme, e o poder das belas é subestimado até hoje. Talvez por isso que, neste início de século, algumas delas tenham se decidido pelo ensino prático. Um arrogante jovem desta Belém teve que aprender da pior forma:
A discoteca rolava com som e luz estraboscópica quando um grito feminino venceu o barulho:
- Quem pegou na minha bunda?
O arrogante e sarado rapaz se apresentou, olhando de cima:
- Fui eu, por quê?!
A bela era campeã de jiu-jitsu. Antes que os seguranças da casa interviessem, o rapaz tinha recebido a lição: pelo menos perguntar de quem era a bunda, antes de passar a mão nela. Os pés voadores dela deixaram o rosto dele em estado lastimável. E os brucutus da segurança não conseguiram vencer a barreira de rostos bonitos que se interpuseram entre eles e a jovem campeã defensora do respeito.
As belas não são mais como antes. O que é ótimo, não?

sexta-feira, 6 de julho de 2012

BBB 13

Afinal alguém com bom senso resolveu tomar uma medida contra essa decisão absurda de publicar os salários individualizados dos servidores públicos.
Publicar a remuneração individualizada é uma invasão de privacidade inadmissível: ultrapassa os limites da transparência para entrar na síndrome BBB, que não passa da vida alheia tornada espetáculo de massa. BBB 13, mania de misturar escândalo com política, inaugurado em escala nacional há alguns anos.
Servidores públicos vão arrostar, com certeza, durante muito tempo, as consequências desses dias em que seus salários foram divulgados sem respeito algum por eles. E não se trata apenas do vizinho, da perda de prestígio social, no que se refere aos que ganham menos, ou do recrudescimento dos pedidos, no que diz respeito aos que ganham mais. Saber quando ganha uma pessoa é um dado empresarial precioso; mais precioso ainda para o estelionatário e para o chantagista. E para quem pensa que só os que ganham mais estão expostos a esse tipo de coisa, há alguns milhões de boletins de ocorrência feitos por pessoas pobres nas delegacias demonstrando que o golpista gostaria muito de aplicar sobre um milionário, mas, na falta deste, se contenta com o vizinho de salário mínimo.
Essa medida também consagra um mecanismo estabelecido a partir da irritação provocada pelos segredos de Polichinelo – aquilo que todo mundo comenta em voz baixa porque é oficialmente secreto – em torno das contas públicas: o linchamento moral, que frequentemente gera consequências físicas nas pessoas atingidas.
À falta de punições rápidas e corretas, ou seja, à falta de um procedimento judicial que dê satisfações à sociedade, atira-se o suspeito à fúria. O BBB 13 tem sido farto de episódios em que, alegando-se que “nunca, jamais antes neste país” se investigou tanto a corrupção, adversários e aliados incômodos são entregues ao linchamento moral. Diz-se que assim se procede em nome da transparência: mas não há transparência no fornecimento de informações fragmentadas à imprensa, sob o título genérico de “vazamentos”. Há malícia, uma edição de programa para dosar a sujeira do que vai para o ar, sem comprometer o emissor.
A partir de Fernando Henrique – que por primeiro colocou o orçamento da União à disposição do público – tem-se avançado muito no acesso das pessoas às contas nacionais. Mas esse avanço é muito menor do que parece: é preciso, do lado de quem consulta, entender um pouco da hermética linguagem dos procedimentos administrativos. Para a maioria das pessoas, é como olhar um quadro de Dali: você gosta ou não gosta, mas não entende nada.
Nesta semana, os Tribunais de Contas divulgaram as relações de pessoas com pendências nas prestações de contas, também em nome da transparência. Há inelegíveis por pendência de R$130,00... Há dirigentes de pequenas organizações sociais, que receberam migalhas para suas atividades e não conseguiram comprovar pequenas despesas, lado a lado com prefeitos que não prestaram contas de algumas centenas de milhares de reais. Destes, não há ninguém preso ou com bens confiscados. Aqueles pequenos sofrerão a maledicência e a vergonha. Os grandes, nada, exceto restrições no registro de candidatura: neste país, o grande desvio é encarado como um problema político, como está demonstrando a questão do julgamento do mensalão.
Há, entretanto, consequências graves dessa estratégia de linchamentos: as multidões não são confiáveis, escreveram tanto Mao Tse Tung quanto Robespierre, entre outros. Um episódio da História de Portugal (para não dizer que não falei de flores...) pode explicar melhor o que quero dizer.
Quando Napoleão invadiu Portugal e D. João VI fugiu para o Brasil, o general Bernardim Freire d’Andrade, comandante de parte do pequeno e improvisado exército português foi obrigado a recuar diante do inimigo e, com isso, retardar o avanço francês dando tempo para os ingleses receberem provisões e reforços. O recuo foi interpretado pela multidão como covardia. O general foi linchado pelos próprios portugueses e, apesar de ter ele conseguido retardar o suficiente a tropa francesa, a defesa do Porto ficou impossível. O general foi reabilitado mais tarde, mas milhares de pessoas morreram porque não tiveram tempo de fugir da cidade praticamente sem defesa.
Erros históricos podem ser apontados e removidos. Mas nunca corrigidos: o tempo que duram os tornam irremediáveis e as consequências deles permanecem.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Na verdade, a comissão é de limpeza

Eu não entendi bem porque se chama “da verdade” essa comissão que foi criada para, pelo menos na intenção, iluminar os desvãos da violência política recente.
A verdade é um valor cuja definição é polemizada há milhares de anos; a verdade histórica, entretanto, geralmente é a História do ponto de vista do vencedor. Além disso, é um princípio bem conhecido aquele que recomenda uma perspectiva temporal para que se analisem os fatos: as informações do passado recente são sempre incompletas, a complexidade das sociedades humanas não permite que se veja o quadro se estivermos muito próximos dele.
A lei que cria a comissão estabelece, como finalidade de sua atuação, “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos” cometidas ou sofridas durante o período da ditadura militar e, para isso, deverá por às claras tudo o que se praticou naquele tempo em nome da política e da ideologia.
Ou seja: vamos lavar os porões. E isso não é bem uma questão de verdade, mas de limpeza.
Eu gostaria que essa limpeza fosse mais abrangente: afinal de contas, os presos políticos sofreram o que sofriam os presos comuns. As violações de direitos são as mesmas: a tortura foi um instrumento policial considerado válido até bem recentemente. O pau de arara, as surras e os choques elétricos, além de alguns outros bizarros instrumentos (uma pequena amostra pode ser vista no minimuseu do “São José Liberto”, em Belém do Pará) faziam parte do cotidiano do investigador e do preso. Se a causa era política ou não, para mim não interessa: todos aqueles submetidos a esses métodos de apuração da verdade eram pessoas humanas e tiveram seus direitos violados.
Por que todos os setores envolvidos nas listas de assinaturas pedindo a revisão política se omitem nesse ponto e se recusam a ver o suspeito de um crime comum em igual condição à do suspeito de um crime político? Por que existe indenização, concedida por mecanismo administrativo, para os inocentes torturados ou punidos em razão de ordem política e não existe para os inocentes igualmente torturados ou punidos na apuração de crimes comuns? Estes têm que se submeter a uma longa demanda judicial, mesmo com o corpo e a vida mutilados. E não são poucos...
Alguns veem nessa comissão um passo para a revisão da anistia. É uma posição tola. Além de não haver condições objetivas – o que aconteceu há 50 anos não vai mobilizar as massas – condenar à prisão idosos senhores que foram um dia foram cruéis apresenta o risco considerável de que a imagem de hoje se sobreponha à de ontem, criando correntes de simpatia que geram certas ideias indesejáveis.
Eu gostaria também que a limpeza abrangesse outros setores, que não o carcerário. Principalmente, tirar da administração pública o restolho que ficou desse período. A herança da ditadura está em toda a organização tributária e orçamentária brasileira: ela é profundamente desrespeitosa com o cidadão, é ditatorial (ou imperial, se quiserem) e nos faz pagar ao Estado muito mais do que devíamos. A adoção da democracia de multidões só piorou as coisas: as diferenças regionais são cada vez mais profundas. Está, também, na organização das polícias (as polícias militares com seu viés de infantaria, as polícias civis circunscritas a divisas que se tornam mais fluidas cada dia que passa) e responde, em boa parte, pela sua inoperância e pelas sucessivas crises de segurança que vivemos em todo o país.
É também herança desse período a inflexibilidade burocrática que emperra todas as iniciativas e alimenta a corrupção. A república brasileira do papel carimbado se consolidou durante a ditadura, efeito direto do hábito militar, fruto das necessidades de guerra, de reduzir tudo a manuais e regulamentos. Houve uma tentativa, nesse período, de podar os excessos, com o Ministério da Desburocratização. Ficou na tentativa, e até hoje, diante da administração pública, a pessoa vale menos que o papel que ela exibe.
Espero que a comissão consiga preencher algumas reticências ou trechos obscuros da narrativa histórica – mesmo que só nossos tataranetos possam saber se ela conseguiu.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Dois Brasis, ao vivo e a cores

Quem soube ver, viu, no domingo passado, ao vivo e em cores, os dois Brasis descritos por Roger Bastide há 50 anos. No Domingão do Faustão, a competição entre Bragança, no Pará, e Prudentópolis, no Paraná, revelou muito mais que a simples pluralidade brasileira, ou o marketing mexendo com as cidades, ou o poder de fogo da Globo.
Prudentópolis, limpíssima, arrumadíssima, pronta para a tevê. Uma cidade bem educada. Se ela é assim todos os dias, não sei; mas, se não é, a sua prefeitura providenciou para que se apresentasse impecável para o Brasil ver. A imagem era de um rico polo rural.
Bragança suja, precária, desordenada. Uma imagem do cortejo da pobreza: mercado a céu aberto, métodos de trabalho primários, cartazes com pinturas irregulares, barracas por toda parte. É assim todos os dias, não dá para fazer melhor, proclamava a cidade. Somos isso, e nada mais.
Os câmeras, em Prudentópolis, sucederam closes em lindas adolescentes louras. Ricos rostos bem tratados de olhos claros. Os câmeras, em Bragança, ignoraram solenemente os lindos rostos de traços índios que surgiam fugazmente nas imagens. As morenas de olhos amendoados e pele de cobre, longos e lisos cabelos negros, foram trocadas por barrigudos peixeiros de camisa aberta. O contraste revela claramente que o estereótipo continua a ser a lourice europeia: os profissionais da imagem não encontraram beleza alguma naqueles rostos de Ceci.
As tomadas feitas em Bragança não fizeram justiça ao município: nem mar, nem os canais do mangue mereceram referência. As tomadas de Prudentópolis aproveitaram ao máximo a paisagem serrana. Lá, quem fez o documentário pensava em turismo. Aqui, aparentemente nem passou perto a ideia de aproveitar um programa campeão de audiência, em rede nacional, para atrair visitantes.
Os dois Brasis mostraram-se inteiros.
Em Prudentópolis, o Brasil desenvolvido mostrou-se disciplinado, organizado e discreto. Em Bragança, bagunçado e ansioso. Em Prudentópolis, um Brasil bem vestido e bem tratado. Em Bragança, um Brasil em roupinhas de 1,99, gastas sandálias de dedo e poucos dentes, ansioso para dizer “estou aqui”.
Em Prudentópolis, delicadas sombrinhas; em Bragança, palhas de açaí, quase de graça.
À vontade, a apresentadora de Prudentópolis mostrou facilmente a cidade e seu povo. Constrangido, o apresentador de Bragança não conseguiu sequer se informar direito: se tivesse perguntado, saberia que Bragança faz a melhor farinha de mandioca do país – farinha que ele disse ser de milho. A apresentadora levou o filho para Prudentópolis: valia a viagem. O apresentador de Bragança demonstrou que aquilo era só um trabalho. Ele traduzia, simplesmente, a leitura que o Brasil desenvolvido faz do outro Brasil: uma terra estranha, pobre e feia, onde se tem que fazer cara boa para a câmera, por obrigação.
A rica Prudentópolis levou o prêmio maior, resultado correto pelas regras da competição. A pobre Bragança ficou com o menor. No mesmo dia, o poderio de Minas Gerais fez-se sentir, obrigando a Globo a dar para Diamantina premio igual ao que deu para a cearense Aracati, que vencera seu duelo.
O Brasil rico apresenta-se melhor, lógico. Quanto ao Brasil pobre, um prêmio de consolação lhe basta.

terça-feira, 27 de março de 2012

Desenvolvimento à brasileira


Governo e certa imprensa trombeteiam: o Brasil é a sétima economia do mundo!
Ninguém diz que entre a sétima e a primeira há um enorme abismo: a economia dos Estados Unidos é sete vezes maior que a nossa. E a nossa é menor que a da Índia...

As estatísticas internacionais informam que para cada cem brasileiros há 22 telefones fixos e 123 celulares instalados. O Brasil está em quinto lugar em número de linhas telefônicas, viva, viva!
Hoje meu telefone fixo amanheceu mudo. É a terceira vez em uma semana. Ligo para a Oi. Primeiro uma máquina abusa da minha paciência falando coisas que não quero ouvir. Termina dizendo: “Vou transferir para meus colegas de atendimento”. Ele quase acerta: os colegas humanos são quase robôs. Passo de ciborgue em ciborgue até que alguém testa o telefone. Obviamente a Oi não acredita nos seus clientes: o ciborgue liga para o meu telefone e conclui que ele está mudo. Depois, me dá um prazo de 24 horas que podem ser 48. Da última vez, as 24 viraram 36 e foram necessários seis telefonemas adicionais.
No mesmo relatório que ranqueia o Brasil em quinto lugar, há uma outra informação de que ninguém fala: o Brasil é o penúltimo do ranking em tráfego de voz. O telefone existe, mas a voz não passa por ele.
As operadoras de telefonia brasileira são as recordistas em queixas e reclamações. Nenhuma escapa. Nenhum usuário brasileiro está satisfeito com qualquer uma delas. E paga a tarifa mais cara do mundo.

Uma análise sobre o crescimento industrial brasileiro, feita pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, ressalta os avanços do setor e, de passagem, menciona o “inexplicável custo da energia elétrica”.
Esse inexplicável custo me fez ir atrás do prejuízo. Descobri que a regulação da ANEEL permite que as empresas distribuidoras lancem na composição da tarifa todas as perdas de energia. Ou seja: eu estou pagando o gato que o vizinho fez.
Mas atrás dos prejuízos causados pelas marés energéticas – na semana passada, três refluxos me deixaram sem energia por mais de dez horas descontínuas – não dá para correr: calor que não deixa dormir e comida estragada na geladeira não são mensuráveis para a companhia distribuidora.

A expectiva da Fundação Getúlio Vargas é de que, neste ano de 2012, haja um computador para cada dois habitantes no Brasil. O uso de computadores vem dobrando a cada três anos, segundo essa instituição, e essa progressão deve ser manter assim.
Há cerca de dois meses comprei um no-breack, necessário por causa dos prejuízos imponderáveis provocados pelas marés energéticas. Não instalei imediatamente. Na verdade, levei quinze dias para substituir o antigo. Na primeira falta de luz ele mostrou que não valia o preço. Aliás, não valia nada, porque não funcionava. Tentei trocar: perdera o prazo. Entreguei para o conserto na garantia. Está lá até hoje. Talvez, mês que vem...

Governo e empresas festejam o bom momento econômico: a produção industrial brasileira cresceu 10,5% de 2009 a 2011.
O armário de cozinha que comprei chegou com um vidro quebrado. A reclamação foi considerada e o reparo foi marcado – para 45 dias depois da solicitação.

O desenvolvimento à brasileira é imediatista: não faz mal não haver estrutura suficiente para aguentar os milhões de linhas telefônicas. O importante é que o dono de um celular em Cabrobró do Judas, que paga antecipadamente seis reais por mês para poder quebrar o seu isolamento, exiba o aparelho. Se ele fala ou não ao celular, isto é de outro departamento, como as empresas gostam de dizer, quando mandam você de seca a meca para livrar-se do importuno.
É, ainda, de certa maneira, cínico: o bens ditos duráveis não duram mais que cinco ou seis anos.
E é ufanista: o gigante tem o peito de aço, mas os pés de barro. Quando ele acordar e tentar se levantar...

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Escândalo!

Nós, brasileiros, acabamos de presenciar uma escandalosa discussão sobre a fiscalização que deve ser feita sobre os juízes.

Escandalosa porque, evitando cuidadosamente o ponto principal – que é a manutenção do compadrio regional que garante a impunidade para a corrupção – ela se ateve a firulas processuais.

Em complemento a esta discussão, o escandaloso resultado final de um processo que, só pelo fato de existir, já é um escândalo: o jornalista Lúcio Flávio Pinto, que é um homem honrado, vai ser obrigado a indenizar Cecílio Rego de Almeida, identificado oficialmente como o maior grileiro da Amazônia, por tê-lo chamado de pirata fundiário, que é a outra forma de dizer “grileiro”.

Cecílio era tão seguro de sua impunidade que processou o jornalista. E estava certo: Lúcio foi condenado. A condenação definitiva veio na forma da firula processual: faltou encapar de formalidade as razões do injustiçado. Portanto, na lógica do Judiciário brasileiro, a razão está com o delinquente.

Ah! - dirão os processualistas. - Mas se não fizer assim, vira bagunça!

Bagunça já virou há muito tempo.

Bagunça é dois terços dos presos serem provisórios, aguardando julgamento por anos a fio, passando mais tempo na cadeia do que passariam se julgados e condenados.

Quantas pessoas inocentes haverá entre eles?

Bagunça é julgar-se um crime eleitoral quando o indiciado está para terminar o mandato que talvez não devesse ter exercido, como aconteceu recentemente com o prefeito Duciomar, de Belém. Só com ele? Não, há dezenas de prefeitos em todo o Brasil exercendo mandatos condicionais, por assim dizer. Ninguém sabe se a acusação é falsa ou verdadeira; o que se sabe é que o Judiciário não julgou.

Bagunça é o senador Jáder Barbalho ser julgado pela lei da ficha limpa quando jamais foi julgado por nenhuma das denúncias que contra ele foram feitas. Há dez, doze, vinte anos – nunca foi sequer interrogada uma testemunha, nesses processos. Ou seja: ninguém bateu o martelo contra ou a favor dele para assegurar à população qual é, realmente, a sua ficha.

Bagunça é centenas de milhares de filhos ficarem sem receber pensões porque o Judiciário não consegue ser eficiente contra os pais caloteiros.

Bagunça é um processo no juizado especial de pequenas causas levar seis, sete anos, para ser concluído.

Bagunça é um divórcio ou um inventário amigáveis, com partilha consensual, levar quatro anos para terminar.

E de onde se origina toda esta bagunça? Em grande parte, daquilo que os processualistas dizem que deveria ordená-la: do excesso de formalismo, do excesso de papéis, do excesso de exceções. Do escândalo que é valorizar mais a dragona do carimbo do que o suplicante que apresenta suas razões. De deixarem os juízes, detentores da mais alta e mais digna concessão constitucional - o livre convencimento, que as teias do formalismo lhes roubem o exercício da justiça.

Queixa-se hoje a sociedade brasileira de uma insegurança sem precedentes. Bilhões são gastos sob o título “segurança pública”. Mas a raiz da insegurança está na impunidade, e é o Judiciário que a garante. E, enquanto o Judiciário não for eficiente, não poderemos ter segurança.

Acabamos de assistir, no domingo passado, na televisão: o preso foi solto porque formalmente deveria ser: havia progredido na pena. Estuprou uma menina e cometeu outros crimes imediatamente, apenas dois dias depois de solto. Ou seja: o processo a que ele respondeu foi falho, mal feito, mal julgado. A avaliação que foi feita para soltá-lo, se foi feita, foi absolutamente incompetente.

O que vai acontecer com este juiz de execuções penais que soltou esse preso?

Provavelmente, nada. E aí está porque o país assistiu ao debate em que se discutiu a fiscalização do Judiciário: porque não acontece nada. Carimbe certo, e estará tudo bem.

Eu peço aos meus leitores que acessem a página do Lúcio Flávio Pinto para saber a história completa dessa escandalosa condenação. Talvez possam ajudá-lo. E, por favor, não questionem se é certo ou errado o que está fazendo: só ele está na própria pele. A hora é de solidariedade, de demonstrar a insatisfação com o absurdo a que chegou o Judiciário. Não é hora de discutir. Não deixemos que o escândalo deixe de sê-lo simplesmente porque se tornou banal.

O endereço é: www.lucioflaviopinto.com.br .

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O Portinari e o mensageiro

Vou contar esta história, guardada comigo há muito tempo, porque estou cansada da falsa ideia de que são as coisas grosseiras que agradam o povão. Essa falsa ideia, que baixou o nível da televisão para o insuportável, que proporciona decorações monstruosas nas ruas, tem imposto um preço muito alto para toda a população, obrigada a se acostumar com o ordinário, o mal feito, o feio, como se fosse elegante e belo. No entanto, quando a plebe rude – como a chamou Miguel Gustavo – se depara com arte, arte de verdade, reconhece e vive a beleza.

Devido a razões legais, vou contar o milagre sem dizer o nome do santo. Mas acreditem que é uma história rigorosamente verdadeira, e pelo menos uma das personagens vai se rever aqui e, talvez, sorrir com a lembrança.

A organização onde tudo aconteceu é enorme, espraia-se pelo Brasil todo. Rigorosa nas normas e nos fazeres, internos e externos. Controlada e eficiente, sabe exatamente quantas caixas de clipes estão em uso num dado momento – imagine quanto às coisas de valor.

Todos os seus principais escritórios eram ornamentados com obras de arte de um acervo que cresceu e se valorizou lentamente ao longo dos anos. Pinturas, esculturas, móveis, cada escritório tinha seu conjunto que simplesmente ficava ali.

Dá-se que num determinado ano, quando as obras de Portinari chegaram aos preços dos grandes da pintura, o que aconteceu depois da venda de um quadro por quase um milhão de dólares, a matriz resolveu que os quadros dispersos pelo Brasil deveriam ser recolhidos para receberem tratamento adequado – tanto artístico, como de segurança – e, assim, deu ordem para o escritório daqui para que mandasse, sob cuidados extraordinários de seguros e que tais, os Portinari, “cuja relação vai anexa”.

Prontamente o diretor do escritório se dispôs a cumprir a ordem. Mas, desolado, constatou que faltava um dos quadros. Uma mulata, logo uma mulata!, o ícone de Portinari, sua marca e sua palma!

Durante uma semana vasculhou-se o prédio, reviraram-se arquivos – será que o quadro já fora retirado pela matriz e ninguém se lembrava? – o encarregado da busca interrogou os chefes, os subchefes, as secretárias, os funcionários graduados, o chefe da segurança. Nada. Nenhuma pista.

O diretor, desconsolado, já previa toda uma corte de horrores a partir da comunicação de que um Portinari desaparecera ninguém sabia quando nem como – no mínimo, sua demissão do cargo, sem falar em tudo o que a imaginação aventa numa situação dessas. Preparava-se para o pior e, assim, deixou para o último dia do prazo o comunicado fatal.

Na véspera desse dia, ao entrar no prédio do escritório, o diretor avistou um encanecido senhor de poucas letras que envelhecera na firma fazendo limpeza e servindo de mensageiro. Pensou que talvez o homem se lembrasse do quadro, desse uma pista.

- Um quadro de uma preta bonita, é esse que o senhor está procurando?

E ante a resposta positiva:

- Ah, esse... eu sei onde está, vamos lá.

Quase sem acreditar na boa sorte, o diretor acompanhou o homem elevador acima. No último andar, entre os quadros de força e a caixa d’água, havia uma saleta mínima, que outrora servia como depósito de ferramentas e material de reserva para as instalações.

- Aqui é meu gabinete, chefe.

Ali o homem fizera um cantinho para si, com uma velha mesa e uma cadeira. E ali estava, gloriosa e perfeita na sua solidão, a mulata de Portinari.

- Sabe, chefe, esse quadro, ninguém dava bola pra ele... Cada um que chegava na sala, pedia pra trocar. Aí eu trouxe pra cá, eu gosto de olhar para ela! É muito bonito, esse quadro.

Entregou o quadro para o diretor exultante. Ficou triste porque não o veria novamente, espantado quando soube o valor do quadro e quem era o autor, e aliviado ao ser informado que não fizera nada de errado.

Pouco tempo depois, se aposentou, que já completara o tempo fazia mais de cinco anos. Ficara no serviço somente porque as pinceladas de Portinari haviam tocado o fundo de sua alma.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O revelhom

Fui cair de cabeça num revelhom em Ajuruteua, Bragança, Pará.

Revelhom é a festa de entrada do ano à base de som e cerveja. No caso, uma festa de laje levada para a praia.

Como fui parar lá? Simples, eu gosto da Bragança brasileira, do seu jeito índio, embora ainda haja veleidades portuguesas por lá. Gosto das grandes imagens de São Benedito, de barro, com um pano sobre os braços estendidos, onde se coloca um Menino no dia de Natal. Gosto do beiju de puba ou de macaxeira, assado em folhas de bananeira ou de taioba. Gosto de ver tomarem cerveja com limão no trapiche da cidade. Eu queria ver a Marujada. Não vi, e, em troca, pude apreciar um revelhom.

Um revelhom que se preze começa na manhã do dia 31. Eram sete horas, e a madrugadora aqui esperava o café enquanto acabava de contemplar o amanhecer sem aurora destas plagas equatoriais quando chegou o primeiro participante. Um Palio escuro que estacionou na praia.

Dele desembarcaram uma família de seis pessoas, uma mesa, um grande guardassol, cadeiras, o indispensável isopor, depositado cuidadosamente na areia e um número indefinido de sacolas. A gorducha mulher, de biquíni coberto por uma saída de crochê, ajeitou o espaço enquanto o jovem e barrigudo marido abria a mala do carro. E aí da fileira de caixas explodiu o primeiro som do revelhom.

Não era o primeiro do dia, visto que, no bar da pousada, uma outra fileira de caixas já guinchava. Mas assinalava o começo da passagem do ano que, no jeito índio de ser, em que as festas são longas, leva dois dias para acontecer completamente.

Algum músico talvez um dia me explique a preferência do público pelo número três. Bum, bum, bum! Ui, ui, ui! Lícia, lícia, lícia! Ão, ão, ão! Um carro, dois carros, três carros - a praia ficou cheia deles. Cada macaco no seu galho: grupinhos com seu próprio som, todos diferentes, todos com o mesmo ritmo ternário e nenhum com música, porque, por mais boa vontade que se tenha, seria um desrespeito muito grande com qualquer maestro chamar de música esses sons.

As pessoas iam ao mar, voltavam do mar, comiam, bebiam, gritavam uns com os outros, iam e voltavam do mar novamente, caminhavam um pouco. Ninguém dançava. O tumtumtum me lembrou das festas índias e imaginei que, se fizessem duas alas, batendo os pés, aquela multidão iria delirar, ao completar suas raízes primárias.

Saímos de lá em busca de alguma tranquilidade. Nas estreitas ruas de Ajuruteua, coalhadas de carros e gente, não havia qualquer intervalo sem barulho de pelo menos 80 decibéis. As pessoas tomavam o rumo da praia, com seus isopores, sacolas e risadas. As caminhonetes 4x4 conduziam, além da indefectível torre sonora, até geladeira, porque montar barraca, no reveilhom, não é só armar um gazebinho ou um guardassol. Envolve logística: som, isopor ou geladeira cheios, espreguiçadeira, a redinha do bebê, algumas mesas e respectivas cadeiras, pratos de plástico e colheres, copos de plástico e canecas térmicas, artefatos para brincar na areia e, naturalmente, uma bola. Que, no revelhom, fica esquecida em um canto qualquer.

Encontramos um cantinho num bar onde uma enorme placa dizia: proibido o som automotivo. Não seja por isso, raciocinou um homem que comandava uma mesa de cerca de dez pessoas. Ele tirou do carro um porquinho de plástico cor de rosa, com dois enormes olhos telados e o instalou na sua mesa. Era um som. Dos pesados.

O dono do bar explicou-nos pacientemente que só havia aquele som porque a maré estava alta. Depois, quando o mar recuasse, seria bem pior.

Bem, nós mudamos de lugar e almoçamos uma imensa enchova assada na brasa.

Mais tarde pudemos conferir a veracidade da informação do homem. A praia se encheu de aparelhos de som, montados em carrinho de mão, bicicleta, motocicleta, carro de passeio ou carro utilitário. As pessoas desfilavam o som e concluí que essa era a diversão. Ocasionalmente faziam alguma outra coisa, como beber e comer. Nas ondas, um ou outro adulto acompanhando criança e um herói que resolveu surfar, por cerca de dez minutos, no seu parapente.

Os maçaricos e gaivotas desapareceram. Só ficaram os urubus, planando ao vento. E nem pipas havia para concorrer com eles.

Na pousada, a cacofonia se instalou definitivamente: um carro estacionou na porta e um potente conjunto despejou som para dentro. Agora havia um tecnobrega na entrada, outro no bar, e tudo o que vinha da praia e da rua. Houve um momento que o mais alto deles mudou para pagode. Por incrível que pareça, foi um alívio. Um de meus filhos conseguiu achar outro alívio: o sertanejo estava ausente.

À noite, todo mundo na praia, cheia de grupos bêbados. Finalmente dançou-se: um tremeterra estacionou, um DJ assumiu o comando e sufocou o som automotivo. O ritmo era o mesmo: ui, ui, ui! Lícia, lícia, lícia! Mas pelo menos agora as pessoas gritavam e pulavam.

Meia noite, fogos de artifício. Um canhão de luz iluminou as nuvens, competindo com a lua em minguante.

Bem, as crianças dormiram. Elas dormem, não é? Desde que estejam cansadas, e o mar cansa.

Quatro da manhã – e a luz apagou. Blecaute total. Metade do ruído foi substituído pelo rugido dos motores: carros e motos em pegas na praia escura, num alucinado globo da morte. Pela manhã veríamos círculos perfeitos e paralelos aqui e ali e as fundas marcas das derrapadas.

A arena em torno do tremeterra começou a diminuir mas, às cinco, a energia voltou. E o revelhom prosseguiu.

No bar da pousada uma mesa animadíssima, comandada pela própria dona, bebia todas e dançava o que viesse: há muito tempo que eu não via a velha dança de gafieira, pé com pé, coxa com coxa. Como alternativa, a funqueira, com os casais rebolando juntos até o chão. Samba, carimbó, marchinha? Quem falou nisso? É revelhom, e o carnaval é só em fevereiro!

Oito horas e o gerente da pousada resolveu impor moral: os hóspedes aguardavam desde as sete o café da manhã, mas madame e seus convidados não estavam nem aí. Ele resolveu a parada simplesmente tirando as mesas da frente do grupo, que se mudou para mais adiante. Mas um homem permaneceu sentado, no mesmo lugar, imóvel. Ele dormia profundamente, apesar dos mais de cem decibéis de som. E foi difícil acordá-lo.

Quando eu levava à boca a xícara de café doce demais vi o Palio escuro se instalar na areia da praia e desembarcar sua carga. O revelhom estava emendando no domingo.