segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A fala dos presentes

A caridosa jovem levara para a pobre creche uma partida de presentes de Natal: bolas para os meninos, bonecas para as meninas. Comprara com seu próprio dinheiro, bolas iguais, bonecas iguais. Participou da festa e da distribuição. Dias depois, conversando com uma menina de uns seis, sete anos de idade, ouviu da garota que nunca tinha ganhado um presente.
- Mas você estava aqui na festa, recebeu um presente, sim!, disse a jovem. E a menina:
- Não foi um presente, foi só uma boneca...
Os presentes falam. A menina em questão entendeu a linguagem do seu, embora não conhecesse a palavra certa para classificá-lo: foi uma esmola. Esse tipo de donativo sempre é. Comprado em lotes saídos de fábrica, estereotipados (bolas ou carrinhos e bonecas, quase sempre), distribuídos por cabeça, são dados ao símbolo “criança”, não a uma criança pessoa. E, embora sejam muito festejados pela mídia e reivindicados pelos pais, levam uma alegria pela metade, a alegria politicamente correta: porque é Natal, dão-se presentes.
Uma linguagem parecida é expressa pelos presentes das confraternizações. Impessoais, com limite de preço e, de preferência, unissex, eles exprimem apenas o cumprimento de uma obrigação social. Não se relacionam com a pessoa, mas com o ser social: o técnico, o auxiliar, a secretária, o colega da ginástica. Um olhar sobre o tipo de presentes dados por amigos invisíveis revela um oceano de padrões: cantor romântico para pessoas de meia idade, cantor de rock ou pop para os jovens, artigos de papelaria para as secretárias, chaveiros para os homens. Um brinco para a garota da recepção. E sabonetes.
Escolher muitos presentes é cansativo. Muita gente se exime disso: encarrega um terceiro de “ir às compras de Natal”. A lista tem que caber no orçamento e a ida às compras tem que caber no tempo disponível. Os preços vão alterando as ideias iniciais e de repente está tudo igual ao ano passado: para o idoso, roupa de dormir, toalha de banho ou sabonete. Para a adolescente, uma bijuteria. Para o marido ou a esposa, um perfuminho. Para o rapaz, uma carteira, um pen-drive. O terceiro encarregado dá seu jeito e os presentes traduzem exatamente a diferença entre a boa vontade e a disponibilidade de dinheiro e a falta de tempo. Este tipo de presente é menos impessoal, porque leva em conta o mínimo de conhecimento da pessoa que vai receber.
Um bom presente, um presente de verdade, informa à pessoa que recebe que ela não é apenas mais uma, mas está identificada em seus gostos, necessidades e preferências. Isso é produto de convivência e bem-querer, não é coisa que se descubra apenas na semana do Natal. Presentes sem custo (como um abraço) ou baratinhos (como um chaveirinho de torcedor) ou caríssimos (como certos tênis) precisam refletir isso, para não serem “só uma boneca”. Ou apenas uma obrigação.
Por isso que um bom propósito de Ano Novo é prevenir o Natal e os aniversários que virão aos poucos, desde janeiro. O custo/benefício é bem maior: comprar aos poucos sai mais barato e dá para lembrar exatamente o que cada pessoa da lista necessita ou deseja. Além de que o estresse do Natal é reduzido: haverá sempre as últimas compras, mas serão apenas as últimas, não todas.
É com este propósito, que não sei se cumprirei, que me despeço de 2013. Agradeço a todos vocês a paciência de me acompanharem e espero que vivam 2014 intensamente, com a felicidade ao alcance do coração.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Conto de Natal

Contos de Natal geralmente são melosos e chorumelentos. Há sempre alguém sofredor de grandes olhos arregalados e uma alma com acesso de remorso ou de bondade. Este, posso lhes garantir, não é assim. Até porque a bondade raramente passava pelo coração do senhor Arq, carinhoso e oportuno apelido dado pelo pessoal do engenho a Archybald Souto, para ficar em apenas dois de seus nove nomes, visto que eram poucos os capazes de pronunciar o nome inteiro. É, o conto é ambientado naquela zona de transição entre a libertação dos escravos e a chegada do grosso dos imigrantes, quando a mão de obra na lavoura se tornou rara. Não que isso alterasse muito as coisas nestas fazendas amazônicas, visto que escravos havia poucos: s selva, velha conhecida dos ioruba e dos banto, que com ela conviviam na distante África, propiciava a fuga e os quilombos, desestimulando as compras pela dificuldade de manter a propriedade. Mas, mesmo assim, foi um golpe para os pais de Arq, acostumados a várias e diversas mordomias proporcionadas pelos escravos domésticos. E, é claro, para Arq também: da noite para o dia, os moleques em quem mandava e desmandava, batia e xingava, se tornaram inalcançáveis. Aqueles pretinhos agora fugiam. E alguns o desafiavam, mesmo, tomando a liberdade com as mãos, os pés, a cabeça e o sangue guerreiro que gritava neles repelindo os insultos.
Arq se preparava para o Natal. A fazenda não tinha capelania, de forma que a vinda do padre para celebrar a missa do Natal era um acontecimento. Mas tinha seu grupo de beatas, o terço obrigatório às seis da tarde, o catecismo enfiado na cabeça através das mãos, empurrado em bolos de palmatória. Arq recebia suas aulas e seus bolos em separado dos negrinhos; as palmadas, entretanto, eram iguais para ele como para os outros. Assim, pelas frestas da porta e das janelas da salinha onde ardia permanentemente uma lâmpada de óleo diante do crucifixo, a meninada negra se vingava espiando Arq gritar de dor a cada resposta errada. A beata encarregada acreditava que aquela punição complementar, proporcionada pela plateia clandestina, ajudaria o seu pupilo a aprender mais depressa, embora o efeito fosse contrário: Arq, com raiva, tropeçava no Pai Nosso em todas as aulas.
Ora, os negrinhos agora eram completamente livres e a liberdade lhes permitia grandes risadas a cada grito de Arq. Além de que era proibido chorar: o menino branco ficava vermelho com o esforço de engolir soluços, lágrimas e raiva, o que divertia enormemente a criançada. Na saída dessas aulas Arq não encontrava ninguém. A garotada desaparecia, porque afinal de contas se tratava do filho do patrão, um filho d’algo cuja palavra sempre valeria mais do que a deles. Arq se desabafava no que encontrasse pela frente, inanimado ou não. E de tal forma que até as galinhas, que todo mundo sabe que não têm um pingo de cérebro, fugiam assim que o percebiam.
Pois Arq se preparava para o Natal: precisava decorar o “Venite Adoremus” que a beata de ocasião encasquetara que ele deveria cantar na noite santa, acompanhado por ela própria ao piano, que martelava com gosto enquanto o pequeno se esganiçava:
Adeste fideles, laeti triumphantes,
Venite, venite in Bethlehem!
Natum videte, Regem angelorum
Venite adoremus, Venite adoremus,
Venite adoremos Dominum.
Aeterni parentis splendorem aeternum,
Velatum sub carne videbimus;
Deum infantem pannis involutem.
Venite adoremus, Venite adoremus,
Venite adoremos Dominum.
Invariavelmente Arq tropeçava do “velatum sub carne videbimus”, da mesma maneira como todo mundo tropeça no hino nacional, entre “Brasil de um sonho intenso” e “Brasil de amor eterno”. Em vez de “velatum” cantava “venite” e um forte acorde do piano era seguido pela voz aguda da beata: “ve-la-tum” e pelos risinhos daqui e dali.
De tanto prestar atenção no Arq a meninada negra aprendeu a cantar do seu jeito:
“Déste, fidéste, léti o elefante,
venite, venite in Be-e-tlém.
Nato vidéte régi ano loro,
venite adoremo, venite adoremo,
venite adoremo do-o-minó”.
Às proximidades do Natal a beata desistiu da segunda estrofe do hino. Arq conseguiu então ensaiar corretamente, e ensaiou tanto que a música ficou na sua cabeça, repenicando. E repenicou até o momento em que ele se postou do lado do piano, e soaram os primeiros acordes. Aí, deu branco.
A beata olhou para ele e iniciou de novo. Arq, nada. Ela tocou pela terceira vez e então a meninada correu em socorro:
“Déste, fidéstes...”
Arq tomou prumo e tentou controlar a situação, cantando a plenos pulmões, tentando sobrepor sua voz ao do coro improvisado. Não deu. As vozes brancas gritavam “venite, venite” e, quando soou o último acorde, o padre estava emocionado.
Tanto que nem percebeu a cara de escândalo da beata, o rosto horrorizado da dona da casa, a raiva contida nos olhos do pai e exposta na vermelhidão do rosto de Arq. Levantou-se da cadeira e elogiou
“a grandeza de alma dos que organizaram um tão belo coral, mostrando o verdadeiro espírito de Natal”.
Depois os brancos foram para uma mesa, do lado de dentro, os negros para outra, do lado de fora, Arq foi cumprimentado e a criançada negra se atirou sobre um raro café da manhã, temperado por uma doce desforra.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Nós e os bichos

No convento de Santo Antonio, no Maranhão, os turistas podem conhecer a curiosa história dos padres franciscanos que, no início do século XVIII, moveram um processo contra as formigas que lhes roubavam a comida e ameaçavam derrubar o convento com seus túneis. As formigas tiveram um defensor designado; e tão bom que convenceu os juízes a simplesmente escolher um lugar novo para elas e, em seguida, ordenar que se mudassem, E, conta o padre Manuel Bernardes no seu livro “Nova Floresta”, elas se mudaram.
Os padres do Maranhão não estavam inovando: eles apenas repetiam uma prática medieval, já então caída em desuso na Europa, pela qual os animais eram processados e julgados. Touros, porcos e cavalos homicidas eram presos e julgados regularmente por um tribunal civil. E não eram mortos de qualquer maneira: eram executados por carrasco (que usava luvas para não sujar as mãos com a execução de um animal) na forca, com direito a escolta armada e carreta. As pragas da lavoura – ratos, insetos e sanguessugas – compareciam a um tribunal eclesiástico, representados por um defensor de ofício. Eram sentenciadas, advertidas, recebiam um espaço de terra para onde se recolherem (uma espécie de reserva para ratos ou insetos, que era periciada para que se soubesse se havia condições de sobrevivência para eles ali) e, se não obedecessem, eram excomungadas. Não raro, a população agricultora alvo da praga era advertida também, para que melhorasse os costumes, reduzisse os crimes e pecados, rezasse mais e... pagasse o dízimo em dia.
Há tratados jurídicos justificando estes procedimentos, que vigoraram durante toda a primeira metade do milênio medieval. A base fundamental desses tratados é o direito natural dos bichos à vida. A crítica ao procedimento judicial, que surgiu a partir do século XV, não discute esse direito: apenas considera que, não tendo os bichos razão nem juízo, submetê-los a um processo é uma inutilidade dispendiosa, visto que o processo existe – segundo os juristas de então – para que o réu tome consciência do seu crime e reconheça a sua punição, o que é impossível para um irracional.
Hoje, quando os direitos dos animais estão na ordem do dia, estas antigas práticas parecem ridículas mas, no processo dos padres do Maranhão, por exemplo, a petição inicial para intervenção do tribunal canônico exemplifica claramente que levava-se as formigas a juízo pelo fato de serem elas, como tudo o mais na natureza, tratadas como irmãs pelo fundador da Ordem Franciscana. E não pouco latim foi gasto pelos tratadistas medievais explicando o direito de defesa que deveria ter um bicho, mesmo homicida: era preciso provar sua culpa. A pena para o dono era a perda do animal, e não era uma perda pequena, se considerarmos a pobreza daqueles tempos.
Naquela época era possível, também, mandar as pragas para uma reserva. O caso do Maranhão não é o único e nem sequer raro. Atualmente, humanos e demais bichos disputam cada centímetro do espaço no planeta. Queiramos ou não, a quantidade de espécies exterminadas por pura impossibilidade de sobrevivência cresce a cada dia. Hoje, os banidos para espaços reservados não são as pragas: são quase todos os animais, transferidos para galinheiros, estábulos controlados, reservas selvagens ou, simplesmente, residências e apartamentos. A liberdade deles está quase no fim. Quanto às pragas, são, simplesmente, exterminadas. O que se vai com elas – animais consumidores de insetos, elos na cadeia alimentar natural – é difícil de mensurar. Mas é evidente que estamos a cada dia empobrecendo mais e mais a biodiversidade.
Por isso que é triste testemunhar a brutalidade com que o Brasil está se apropriando da Amazônia e o processo predatório instalado aqui, esgotando rapidamente tudo o que é renovável e sustentável. No próximo século muito provavelmente seremos nós, e não as formigas, que estaremos sendo severamente julgados. E já não haverá mais para onde ir.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Mandela e os controles

Mandela foi o último grande herói do século XX a morrer. Equipara-se a Gandhi e Luther King na habilidade do manejo da resistência em favor da liberdade. Faço o registro, obrigatório para um jornalista como eu, acompanhando todo mundo, mas não é dele que quero falar.
Eu quero falar é do ministro controlador geral da União, que ontem deu uma entrevista dizendo que os corruptos emblemáticos não estão presos. Ele tem razão. Mas eu me pergunto porque o controlador geral da União não age contra os corruptos emblemáticos. Está a seu alcance, visto que eles continuam recebendo dinheiro público.
Ele me responderá, provavelmente, que a Controladoria executa trabalho interno. É verdade, também. Mas também é verdade que em nome desse trabalho interno que atazana a vida de milhares de ocupantes de pequenos cargos criou-se uma estrutura ministerial – e não se sabe se o resultado do trabalho interno compensa o gasto. Nenhuma grande corrupção foi apanhada, até agora, pela Controladoria. Nem mesmo as operações das grandes construtoras, que o Brasil inteiro conhece.
O Brasil hoje vive um excesso de pseudocontroles. Uso esta expressão porque a quantidade de auditorias, controladorias, tribunais de contas e assemelhados é tanta que o serviço público deveria ser puro. Não é, porque todos esses controles são apenas edifícios de papel. Montanhas de papel. Está o carimbo no lugar, tudo bem. E só.
Na administração pública, hoje, tudo que é contrato e convênio tem que ter um pobre diabo atrelado: um funcionário encarregado da fiscalização. Já vi agente de portaria ser fiscal de contrato, na falta de outro qualquer. É obrigatório, o que fazer? Na grande maioria dos contratos não há problema algum a ser apurado; a empresa cumpre o que promete, a administração paga o que empenhou. Os prazos são cumpridos mais ou menos, até porque a administração geralmente descumpre os seus; e o que se acertou é feito. Mas tem que ter esse fiscal que nem sabe o tamanho da fria em que está metido até que a corda arrebente do seu lado, simplesmente porque ele é o mais fraco na história toda. Este é um pseudocontrole com um cristo à mão.
Ontem todo mundo viu na televisão outro pseudocontrole: um ínclito membro do Ministério Público tirando a polícia de um estádio de futebol num jogo decisivo. Ah, porque o evento é da iniciativa privada! Engraçado: o povo estava lá, o povo que precisa de segurança, mas isto não conta. Precisa do carimbo do dinheiro para saber o que a polícia deve ou não deve saber. Então ponha o carimbo: evento privado! Para os torcedores que saíram quebrados ou presos, deve ser significativo saber se o evento foi privado ou público. Também não é significativa a conta passada ao SUS no socorro dessas pessoas.
Eu ainda tenho esperanças de ver a burocracia se recolher ao seu tamanho indispensável, os bancos assumirem seus malfeitos, a lei de licitações ser substituída por algo mais perto da realidade, o Brasil se identificar como plural, com um mínimo de camisas de força nacionais, com uma justa repartição tributária e mais bom senso e eficiência nos governos. Mas a cada episódio desses eu sinto esse dia muito distante.
Não faz mal. Mandela soube esperar, em muito piores condições. Eu acho que vale a pena seguir o exemplo dele.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A assombração

Nos idos dos 1960, nascera na Juventude Universitária Católica, a JUC, uma facção de esquerda chamada Ação Popular. Baseada na teologia da libertação era composta por jovens católicos envolvidos em política – a melhor maneira de construir o bem comum, como diz hoje, meio século depois, o papa. Esses jovens católicos confrontavam os comunistas que, clandestinos mas poderosos, organizados e sérios, tentavam controlar completamente o movimento estudantil. Eram uma boa alternativa para uma esquerda livre do predomínio soviético. A diferença fundamental entre os católicos de esquerda e os comunistas pode ser resumida assim: para os católicos, os meios eram tão importantes quanto os fins; para os comunistas, os meios justificavam os fins. Isso parece pouco, mas é um abismo inconciliável. Estávamos, entretanto em plena guerra fria: “quem não está comigo está contra mim”, diziam russos e norte-americanos. Quem não estava com nem um, nem outro, foi liquidado.
Veio o golpe e a AP, que mal se formara, foi considerada inimiga do regime. Conseguiu, no entanto, fazer o congresso da UNE de 1965 e controlar a entidade, já ilegal. Entre os militantes da AP estava José Dirceu, vindo da União Estadual de Estudantes de São Paulo. Inteligente e extremamente persistente, apoiado pelo poderio paulistano, José Dirceu conseguiu convencer as lideranças que era melhor fazer o congresso da UNE de 1966 em São Paulo. O congresso de 1965 tinha sido feito em Minas Gerais: o discreto e eficiente povo mineiro segurara a onda sem problemas.
José Dirceu expôs esquemas de segurança e assumiu a responsabilidade. O congresso se reuniu e todo mundo foi preso. José Luiz Guedes, eleito presidente, saltou do ônibus-cadeia em movimento para escapar. Conseguiu e retomou o bê-a-bá: começar de novo com todas as lideranças devidamente identificadas, “queimadas”, como se dizia então, com a única opção da clandestinidade absoluta.
José Dirceu manteve-se como quadro de liderança de AP. Mas a facção enfrentava enormes dificuldades: foi rejeitada pela ala conservadora da igreja católica, cujos integrantes, em muitos casos, denunciaram os militantes, como aconteceu com frei Betto, obrigado a uma fuga incessante para escapar da cadeia. A JUC também se desmontou. Mas a AP tinha milhares de militantes não comunistas. De alguma forma eles tocavam o barco. Até o dia em que a direção nacional da organização, a qual José Dirceu integrava, decidiu que era tempo de abraçar a causa comunista. Razões? A URSS financiava e os escrúpulos eram poucos: afinal, para eles, os meios justificam os fins. A AP, católica, virou a APML – Ação Popular Marxista Leninista, defendendo a luta armada. A esmagadora maioria dos militantes deixou a facção, indo enfrentar solitariamente seus destinos. A APML virou mais um segmento comunista, do mesmo tamanho da Polop, VAR, Var Palmares etc.
Muitos viraram fantasmas, mergulhando de cabeça na clandestinidade. Outros passaram a ter vidas duplas. A esquerda católica, entretanto, conseguia dialogar com os comunistas e lhes oferecia a proteção que podia, ajudando a solapar o regime e preservando vidas. A APML, um pouco por sua origem católica, um pouco pelo fato de que os militantes haviam deixado de ser estudantes e eram obrigados a trabalhar na iniciativa privada, voltou-se para o movimento sindical e, em conjunto com outros segmentos comunistas, apostou nas lideranças dos sindicatos de trabalhadores nas indústrias, o mais importante dos quais, o dos metalúrgicos de São Paulo, tinha uma liderança carismática, muito próxima dos católicos, o Lula. Não sei quando José Dirceu e Lula se encontraram, mas sei que, desde a primeira greve no ABC, na década de 1970, Dirceu já era o fantasma do Lula.
Como toda assombração, era fluido o suficiente para desaparecer por detrás da barba hisurta do metalúrgico. Fez as pontes necessárias para que Lula aproveitasse toda aquela enorme estrutura do clero de esquerda, derrotado pelos conservadores dentro da Igreja Católica, para a organização do PT. O crescimento do partido levou, necessariamente, seus líderes à elite política. O aprendizado levou algumas décadas, mas foi completo: discursos para o povo e manobras nos bastidores; uma versão no palanque, outra no gabinete. E algumas máximas clássicas da política: não se faz nada sem dinheiro; é preciso ir onde o dinheiro está; o feio é perder.
Lula no palanque e seu fantasma, Dirceu, nos bastidores. A guerra fria terminou, os comunistas puderam ocupar seu espaço legítimo, o fim da clandestinidade fez cair as máscaras. O clero católico, o grande apoiador, festejava os avanços até que um dia o PT chegou ao poder. De repente, frei Betto, o maior ícone católico dessa caminhada, se afasta do governo. Ele descobrira o avesso do avesso. Dirceu, agora com Lula, deixou de ser fantasma e a grande esquerda não comunista trincou de alto a baixo. De novo. Com uma diferença, desta vez: algumas sólidas lideranças católicas haviam se formado nesse meio tempo e elas conseguiram evitar o esfacelamento total: os irmãos Arns, o próprio frei Betto, Leonardo Boff, para citar os mais importantes.
Dirceu é comunista? Não, não é. Ele seria comunista se fosse o caso. Mas ele conhece bem demais as limitações da ação comunista. Dirceu é pragmático e, por isso, não é e nunca foi um estrategista. Todas as vezes em que tentou ser, ocasionou desastres. Como todo pragmático diante da estratégia, ele se equivoca. Seus objetivos são curtos.
Por esta razão não compreendeu que dinheiro deixa rastro – é como cheiro de peixe, se denuncia fácil. E como o cheiro de peixe, onde adere, fica e marca. Mesmo que não esteja no seu bolso. Basta que tenha estado no porão do barco, em grande quantidade.
Seguindo os mesmos métodos de Dirceu, Lula se livrou dele. Sem escrúpulos e justificando os meios com os fins. Principal beneficiário do mensalão, usou a velha máxima política e atirou o aliado na arena: percam-se os anéis, não os dedos. Lula já perdeu um, sabe a falta que faz.
E, agora, Dirceu é fantasma oficial: funcionário fantasma de uma empresa também fantasma, deixou de ser, definitivamente, a assombração de Lula.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O submundo da rede

O espaço virtual é, na fala emprestada a João Cabral de Mello Neto, uma coisa nova inaugurando o seu dia. O mundo ainda está fascinado por ele, ou, mais precisamente, pela revelação de si mesmo através dele. E como esse espaço repete o mundo, é uma coisa nova cheio de coisas velhas.
A diferença é que qualquer um pode ver qualquer uma dessas coisas velhíssimas, da pornografia e do crime até a inocência e a virtude. E a tentação de estar na vitrine para os bilhões de anônimos que compõem a humanidade é forte demais. Assim, as pessoas se revelam nas redes sociais, em nudez de corpo inteiro e, da forma mais imprudente possível, de alma inteira. Como em qualquer lugar desde que o mundo é mundo, colocam-se na mira de predadores.
Rudyard Kipling e Mia Couto escreveram sobre aldeias vítimas de tigres e leões comedores de carne humana. Ambos reportam a advertência da fera, o rugir de ameaça que precede o assalto. Boris Pasternak e Jack London falam das matilhas silenciosas de lobos à caça de homens na tundra ártica. Nestes predadores, a silhueta fugidia e os olhos brilhantes são o aviso. Mas, no espaço virtual, as feras ou as matilhas são humanas: não há aviso para o ataque.
Raymond Chandler descreve com precisão o submundo e Truman Capote vai mais além: encontra o raciocínio do criminoso. Mas a realidade crua descrita em Chandler e Capote tem os limites do concreto e das leis da física: ninguém passa através de paredes. No espaço virtual não há paredes. O que existe são conexões, nós e sistemas. Uma outra realidade, pois.
Ora, os predadores, principalmente os humanos, aprendem rápido. Eles criaram um submundo na rede, com a mais perigosa arma jamais inventada: os instrumentos de comunicação. A palavra, a imagem, o símbolo, aos quais foram adicionados as conexões e os nós. Eles não rugem e nem têm olhos brilhantes para avisar do ataque. Ao contrário, são sedutores.
Este submundo conta com uma rede de pedófilos de 300 mil pessoas, aproximadamente, segundo os dados revelados pela Polícia Federal. Uma rede de sites de pornografia da qual os dez mais visitados contabilizam dois bilhões de acessos mensais (uma visita para cada 4 habitantes do planeta), conforme o Lista10.org. Milhares e milhares de pequenos espaços virtuais – as comunidades – de apologia ao crime e à violência (topei com uma, no Rio, com mais de 30 mil adeptos). E conexões para o crime. Um submundo mais poderoso do que jamais foi qualquer um, em qualquer tempo e que ataca o tempo todo: um crime por hora, segundo a SaferNet Brasil (uma ONG voltada para o combate aos crimes virtuais). Nesse bolo está um terço das empresas brasileiras, todas vítimas de crimes virtuais.
Por isso é que me espanta a facilidade com que as pessoas se expõem nas redes virtuais. Fotos, idéias, sentimentos, hábitos, está tudo lá. Espanta-me também a facilidade com que pais põem filhos pequenos, ainda sem idade para qualquer julgamento, em contato com esse mundo. Crianças de seis anos com tablets e celulares conectados, sem supervisão: é como se estivessem brincando à beira de um precipício.
Não me entendam mal: eu entendo como um direito da criança usar computadores e ter acesso à rede. Mas sempre sob controle, ou de bloqueadores, ou de supervisão direta. A infância é inocente demais e, por isso, a criança é a presa preferida dos predadores, tanto os tigres da Índia, como os leões de Moçambique ou os criminosos humanos.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Dias de vergonha

Houve quem festejasse e houve quem protestasse. Talvez até tenha sido coincidência mas a prisão dos condenados do mensalão exatamente no feriadão da República me cheira a uma jogada ensaiada, uma cartada de marketing. A história toda me enche de vergonha, aquela vergonha que a pessoa sente pelos outros que cometem conscientemente deslizes. O constrangimento.
Eu não tenho dúvidas das culpas apuradas. Duvidar disso seria, antes de mais nada, desmoralizar todas as instituições nacionais. Mas me pergunto sobre as culpas não apuradas, também ligadas a esse escândalo. Tenho a impressão de que o processo foi cuidadosamente conduzido para entregar alguns e poupar outros. E pegar de jeito o denunciante.
Vejo, pela tevê, os condenados pedirem e conseguirem em parte um tratamento especial. A patética declaração de Genoíno de que é preso político, julgado em tribunal de exceção. Sinceramente, eu lamento por este homem, por seu passado e sua coragem. Mas ele não soube resistir ao poder e foi traído por si mesmo, pela crença que “a causa” era mais importante que tudo. A antiga justificativa de todas as guerras, de que os meios justificam os fins, sempre faz muitas vítimas.
Diante do tratamento habitual que a polícia dá aos presos e da superlotação dos sistemas penais, tenho vergonha de ouvir o presidente do Supremo recomendar respeito aos direitos dos presos e de um diretor de presídio se apressar em negar que um preso dormiu num colchonete no chão. Lembro um trecho do “Cachimbo da Paz”, de Gabriel, o pensador, e sinto mais vergonha ainda.
É com constrangimento que me pergunto quem paga a conta do exército de advogados que atende os réus. E é com vergonha que assisto o mais alto tribunal do país negar os últimos recursos, dizendo que são meramente protelatórios, feitos para adiar o cumprimento da sentença – e não punir ninguém pela má-fé, quando a má-fé em juízo é capitulada em lei.
Tenho vergonha em saber que aqueles que receberam a mensalidade clandestina para trair seus eleitores e a consciência pública foram reeleitos. E que alguns dos réus condenados continuam traficando influência, assinando contratos cujo valor e abrangência só podem se referir a mais corrupção. Sinto vergonha em ver parlamentares condenados nesse processo continuarem exercendo mandatos.
Espero apenas que toda esta vergonha que sinto seja resgatada, o que só acontecerá se esse julgamento tiver sido, de fato, o primeiro de uma longa série. Que marque uma pacífica depuração do sistema político brasileiro. Eu sei que é um sonho, isso, mas se não tivermos alguma utopia que nos leve adiante, naufragamos.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

O novo baile

Há 124 anos, no dia 9 de novembro, ocorreu o baile da Ilha Fiscal.
Eu só lembrei disso por que acabei de ler “O Castelo de Papel”, de Mary del Priori, uma biografia (não autorizada, aliás), de Isabel, a princesa que não queria ser imperatriz e disse, ao se retirar do país, que assinaria novamente a lei Áurea e perderia o trono quantas vezes fossem necessárias.
Esta é a semana da República, nascida de um golpe militar gestado em muitas traições, a principal delas do duque de Caxias. Ainda há de se escrever uma biografia (não autorizada) decente sobre o duque para responder à pergunta: como é que o homem de confiança de D. Pedro II tornou-se ícone republicano?
Mas do que quero falar é da repetição dos erros, o que me saltou aos olhos à medida que eu lia o livro da historiadora. Passaram-se 124 anos. A abolição aconteceu sem nenhuma preocupação de proteger o país, os negros, a economia. O ímpeto foi romântico. Não se encontra, nos papéis dos abolicionistas, nenhum plano consistente para encarar as consequências da abolição. Dessa época, o único plano é o de D. Pedro II: um passo a passo voltado para manter a economia funcionando. Não deu certo, foi atropelado e os atropeladores concluíram o processo depondo o imperador com um golpe de Estado que proclamou a República.
Similitudes? Várias. Iniciou-se uma política de transferência controlada de renda. O programa era amplo, o Fome Zero: um passo a passo que envolvia aumento de consumo e aumento da produção. Foi atropelado e os atropeladores decidiram apostar no consumo – a ponta terminal do processo econômico – para garantir uma economia aquecida. A onda de consumo esbarra, entretanto, na pouca oferta. A mais antiga lei de que a humanidade tem consciência se impõe: os preços sobem, a inflação ronda e a política tem que ser revertida. Mas o baile está programado: há uma Olimpíada, uma Copa do Mundo, há que montar a decoração, organizar o banquete. A agitação ganha as ruas, a violência ganha as ruas. Dilma descobre, boquiaberta, que foi alvo de uma vaia: lembra a princesa espantada com as manifestações de hostilidade.
Há do que temer, sim. A violência banalizada e as ruas em desordem. A possibilidade, cada vez mais próxima, de uma paralisação econômica. As declarações públicas contra as leis de controle da corrupção (Míriam Belchior: “Projetos atrasam obras”; Dilma: “Acho um absurdo paralisar obras”). A sensação generalizada de impunidade, de Maluf ao flanelinha, de Zé Dirceu ao Zezinho ladrão. A punição arbitrária, nas prisões provisórias com tempo indeterminado. Os indicadores maquiados. As tentativas de desmoralização do Judiciário e a indiferença deste pelas consequências de sua lentidão. Os apelos, cada vez mais frequentes, de “façam alguma coisa”. E, cada vez mais frequentemente, cidadãos comuns fazendo alguma coisa, não exatamente dentro das regras da convivência e da civilidade.
Este ano, completamos 25 anos de democracia, o período mais longo já vivido pelo Brasil sem governos de força, desde o fim do Império. Eu temo que seja mais um intervalo, com final marcado para o próximo baile.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Do noticiário

Os aeroportos
A notícia: Caco Antibes, no “Sai de baixo” deste domingo: “Dilmaaaaa! Salve os aeroportos do Brasil!”
Outra notícia: empresário está terminando em São Paulo o primeiro aeroporto privado brasileiro. Está gastando de seu bolso 250 milhões de reais. Levou dez anos para chegar na terraplenagem da pista de pouso. O aeroporto tem pista maior que o de Santos Dumont e se destina à aviação executiva (jatinhos e que tais).
O comentário: metade dessa década de trabalho foi para conseguir as licenças necessárias. Ou seja, a burocracia devorou cinco anos de trabalho. As avaliações de projetos e de impacto são necessárias? São, sim, concordo. Com o que não concordo é que a fiscalização seja lenta demais, a legislação, complicada demais, e a estrutura instalada para analisar projetos, precária demais. Há um hiato entre o que o Estado exige e o que oferece. Há outro hiato entre o que prescreve a lei e a sua aplicação, não só porque as leis não são precisas o suficiente, mas também porque as avaliações passam por critérios subjetivos e, às vezes, até cenários futuros.
As estradas
A notícia: as piores estradas federais no Brasil estão no Pará, segundo pesquisa anual da Confederação Nacional dos Transportes.
O comentário: essa notícia é requentada, todos os anos é a mesma coisa. O Pará é o enteado pobre do Brasil. Nosso problema? Eleitorado pequeno, dinheiro pingado... Nós somos a periferia do Brasil. Até em favela carioca hoje se vive melhor: lá tem eleitor aos montes.
A notícia: Prometidas para 2010, a Ferrovia Norte-Sul e a Ferrovia Transnordestina estão praticamente paradas (...) Esse tipo de improvisação produziu sob Lula 17 aditivos apenas no trecho Palmas (TO) – Anápolis (GO). Nesse pedaço de chão, enterraram-se R$ 4,2 bilhões sob trilhos que jamais sentiram o peso de uma composição ferroviária. (Do blog de Josias de Souza).
O comentário: R$4,2 bilhões daria para asfaltar todo o trecho paraense da Transamazônica, trabalho prometido para 2005. E ainda sobraria troco...
Os animais
A notícia: manifestantes invadiram um instituto de pesquisa em São Paulo e levaram todos os cães beagle usados para pesquisa médica.
O comentário: protetores de animais deviam primeiro olhar em torno. Para o céu, de preferência. Gaviões, corujas e falcões não são tão bonitinhos como o beagle que, aliás, é uma raça desenvolvida pelo homem, um transgênico, podemos dizer, feito no século XIX especialmente para caçar lebres e animais semelhantes. Mas gaviões, corujas e falcões são parte da longa lista de mais de cem espécies de animais que precisam de proteção em São Paulo para não desaparecerem, a maioria deles por perda de habitat. Além disso, o cachorro não é das espécies mais usadas em pesquisa. Ratos são os campeoníssimos. Mas não dá para criar rato em apartamento, não é mesmo? O pior da invasão é o tempo perdido: as pesquisa terão que recomeçar. Do zero. Por que ninguém vai abrir mão dos remédios testados e seguros. Azar do paciente que estivesse esperando pelo resultado de algum desses testes – vai sofrer mais um pouco, se conseguir segurar a vida em si.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Paixões: o orgulho

Venho acompanhando, como muita gente, o debate sobre a proibição de publicarem-se biografias não autorizadas. E me espanta ler e ouvir declarações de pessoas públicas defendendo um certo direito de imagem que é, no fundo, o espelho de Narciso.
Muita gente encomenda ou escreve suas próprias biografias. Costumo ler esses livros, que geralmente são de memórias selecionadas pelo autor ou pelo biografado, porque encontro neles uma enorme riqueza de informações que, de outra forma, não teriam registro: o cotidiano das pessoas na época, o que pensavam e como agiam. Essas biografias às vezes são um legado para a família (de onde você veio, garoto, e como foi duro deixar para você tudo o que recebeu); uma versão pessoal de fatos socialmente importantes (isso é o que eu sei e vivi e contraponho ao que sabem e viveram outros); uma desesperada tentativa de não ser esquecido depois da morte (pelo menos deixo um registro de que existi); ou, ainda, ver-se importante, num livro (os amigos geralmente insistem em que o biografado tem muito a dizer e mostrar).
Vaidosamente humano, eu diria, porque à consciência de sua pequenez e quase nulidade histórica, a pessoa humana agrega a consciência da sua individualidade: é pequeno, é quase nulo, mas é único. Perpetuar essa unicidade é o sonho que está por trás de toda autobiografia ou da biografia autorizada.
Mas a imagem que uma pessoa tem de seu próprio rosto não é aquela refletida no espelho do banheiro e, muito menos, no espelho social. Foi por isso que Narciso se apaixonou pelo seu rosto: era mais belo que a imagem que ele fazia de si mesmo. O espelho social, no entanto, não é inteiriço e nem límpido: feito de pequenos pedaços, do cristalino de milhões de olhos, reflete o que se compreende daquela pessoa. Mas é ele que mantém a memória, é ele que mantém o indivíduo para além da própria morte. A imagem social de uma pessoa é construída de opiniões diversas e retalhos multifacetados. Uma biografia autorizada é só mais um desses retalhos. Uma biografia independente, pesquisada, aprofundada, tenta reunir esses retalhos numa única imagem. Raramente consegue: torna-se, também, mais um retalho.
Pessoas com vida pública têm uma imagem social construída ao longo de toda a sua vida e do exercício de sua atividade nos palcos, nas tribunas, nos pódios. Deixam à sua passagem milhares, milhões de impressões – no contato pessoal, no contato através dos meios de massa, no comportamento público e, às vezes, no comportamento privado. Haverá sempre um barbeiro ou um cabeleireiro para dizer alguma coisa delas, do mesmo modo que um crítico de arte ou um analista político ou um comentarista esportivo. Pessoas com vida pública que sejam realmente importantes não têm uma só, mas várias biografias, escritas por pessoas diferentes e em diferentes tempos, também.
Mas, como disse Bill Gates uma vez, “o sucesso é um mau professor”. Ele conduz ao orgulho, a paixão por si mesmo, ou melhor, a paixão pelo que a pessoa julga ser, e este, à perda da noção crítica de si mesmo, uma das formas da arrogância, do julgar-se superior. É por orgulho – a vã tentativa de imprimir, no espelho social, seu rosto narcisado – que esses artistas estão tentando manter a obrigatoriedade de autorização para biografias. Como em todas as coisas movidas pelo orgulho, pelo pequeno colocam em risco coisas maiores: abrem uma brecha para a censura ostensiva e direta, uma das maiores pragas de qualquer comunidade humana, em qualquer campo que seja exercida.
Eu digo que a tentativa é vã por que qualquer um pode fazer facilmente a biografia picareta, que eles dizem combater, de qualquer desses artistas, sem escrever uma linha sequer: é só ter tempo e paciência de folhear revistas e jornais, conseguir as autorizações devidas dos autores das reportagens e notas, dar-lhes o crédito, fazer uma coletânea e publicar. A biografia englobará, com certeza, o lado sombrio e o lado risonho de cada um. E nem precisa pedir licença para o biografado: tudo já foi publicado. É de domínio público.
Eles dão declarações e fazem artigos, sem nem saberem se alguém, algum dia, vai escrever uma biografia de qualquer um deles. Porque verdadeiro valor só será conhecido muito tempo depois de sua morte, quando o tempo filtrar sua arte. E o tempo não pede licença nem autorização.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Supermercados e agrotóxicos

Leio por toda parte que os supermercados vão “rastrear as frutas, legumes e verduras durante o fluxo da cadeia produtiva. A ideia é monitorar o uso de agrotóxicos utilizados na produção destes alimentos”.
Bem, nesta semana que passou fui a três supermercados. E, sinceramente, penso que eles deveriam rastrear primeiro o que está nas suas gôndolas e prateleiras.
Porque eu encontrei tangerinas e melões estragados, batatas começando a apodrecer e coentro com folhas já escuras e alface americana manchada. Nos três supermercados encontrei produtos com validade vencida. E isto não é de hoje: já aconteceu de eu obrigar o atendente do balcão de frios a retirar a mercadoria vencida da gôndola. (Ele achou tudo muito estranho; não sabia o que fazer com os pratinhos que eu empilhava no balcão; ficou espantado de alguém protestar assim; afinal, arrumou tudo numa bandeja e até hoje eu não sei o que aconteceu depois).
Não dou o nome aos bois porque beneficiaria os outros supermercados, em alguns dos quais eu entrei uma vez para nunca mais, porque o preço um pouquinho mais baixo não justifica a negligência generalizada e, muito menos, a sujeira.
Eu não tenho nada contra a fiscalização de agrotóxicos. Tenho medo deles e de muitas outras coisas que também deixam rastros nos supermercados. Essas outras coisas não são novidade e nem dão marketing: o manuseio de frutas; a limpeza das máquinas de fatiar, das gôndolas de carne, peixe e frango, das bandejas e potes com conservas vendidas a granel, das prateleiras de verduras; a regulagem de temperatura de balcões de congelados; a conservação dos carrinhos. Em todos esses itens os supermercados de Belém são deficientes. Qualquer um e todos têm mau cheiro nos setores onde a limpeza faz muita diferença.
Também são deficientes em outro capítulo: as instalações e os serviços. Na maioria das capitais brasileiras os balcões de caixas são distribuídos de forma a permitir a passagem dos carrinhos e a pesagem de frutas e legumes é feita no caixa. Aqui, o consumidor tem que enfrentar uma fila para pesar e outra para pagar; a passagem do caixa é tão estreita que um Jó Soares tem dificuldades para passar. Há um exército de arrumadores, atendentes, embaladores, supervisores e caixas. Mas são tão mal treinados e mal acostumados que raros são os que identificam um consumidor como cliente. O consumidor é uma coisa que está ali; ele que se vire se o corredor foi fechado por dois carrinhos de abastecimento emparelhados. Ele que espere a arrumação terminar – o que geralmente é entremeado por conversas particulares em voz alta, piadinhas e comentários.
Se você pagar em dinheiro, prepare-se para perder. Não há mais moedas de centavo. Dois, três centavos de cada vez – a conta é arredondada e ninguém sequer explica ou pede desculpas. E perder um bom tempo: se for o primeiro quando o caixa abrir, deverá esperar que alguém vá em algum lugar trocar o seu dinheiro, porque as gavetas começam vazias a cada troca de caixa. É frequente o caixa ter que digitar os códigos, porque as etiquetas estão molhadas, dobradas, sem tinta – e haja espera.
Do lado de fora, os caminhões em fila dupla tumultuam o trânsito a qualquer hora. Carretas fecham ruas e infernizam os vizinhos.
Com tudo isto, rastrear os agrotóxicos será, de fato, prioritário? Ou melhor: vai funcionar mesmo?

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Desculpem, mas é preciso

São oito horas da noite do domingo do Círio. Rola Faustão na televisão e eu estou cansada. Donas de casa sempre terminam cansadas o domingo do Círio.
Mas eu preciso escrever sobre algumas coisas relacionadas ao Círio. Coisas de certa forma desagradáveis, nota desafinada no coro ufanista geral.
Eu fiquei chocada com a motorromaria. Milhares de motos e motoqueiros roncando na rua – milhares de motoqueiros sem capacete. A questão não é a lei que, aliás, não abre exceções para romarias ou para qualquer outra manifestação – a questão é a absurda falta de consciência da necessidade de se usar um capacete quando se está numa motocicleta. A questão é a omissão das autoridades civis e a permissividade das autoridades religiosas diante da infração em massa e, sobretudo, diante do desprezo pela própria vida e pela dos demais, feita de forma ostensiva, sob alegação da fé. São os acidentes de moto os que mais matam e ferem no trânsito: não é possível ignorar essa realidade, principalmente num ato religioso.
Também me preocupa – e não é de hoje – o risco provocado pela desordem na procissão fluvial. Havia barcos superlotados. Havia pequenas embarcações bordejando perigosamente balsas e navios. Havia lanchas costurando o percurso. Havia barcos literalmente se tocando uns aos outros. A procissão é bonita, tem seu espaço. Mas o ocorrido este ano em Macapá deve acender um sinal amarelo. Anos houve, já, em que se procedeu com mais rigor nessa procissão. O rigor deve voltar.
Um outro ponto me chamou atenção. Ainda a pretexto da fé, cantores e bandas se posicionam no percurso da procissão tratando a multidão como plateia. É verdade que há muitos curiosos, pessoas que participam apenas por participar. Mas a grande maioria da gente que vai ao Círio é motivada pela devoção. Vão ver a Santa, pedir e agradecer. É desrespeitoso para com um sujeito que andou mais de duzentos quilômetros para chegar a Belém e entregar o seu metro de madeira oferecer-lhe uma exibição que, ao fim e ao cabo, visa apenas a divulgação e a comercialização posterior de produtos. Já basta a carga publicitária que acompanha a procissão em faixas e objetos; só que esta se dissolve na multidão, é devorada, digamos assim, pelo volume da manifestação. O show marginal à procissão é diferente: ele interfere diretamente naquilo que o romeiro está pretendendo fazer.
A última observação diz respeito às promessas dolorosas. Com raízes profundas na tradição católica, elas vêm-se multiplicando ultimamente – desconfio que, em parte, por causa dos cinco segundos de fama proporcionados pela tevê. A autoflagelação, entretanto, não é coisa que se recomende nem que se estimule. Do jeito que vai, está-se transformando em mais um show - desta vez, de horror.
Desculpem, mas é preciso dizer.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Minha Nossa Senhora!

Detenha, por favor, as canetas em Brasília e a ambição da elite brasileira e salve o rio Tapajós de ser destruído por nove hidrelétricas em seu curso. Como padroeira do Pará, não deixe que esse rio, que já foi poluído pela avareza que levou o mercúrio para o seu leito, seja transformado, de receptáculo de vida, em simples máquina de produção de energia, sem qualquer respeito à natureza e aos paraenses!
Peça ao Pai que, por um momento apenas, reviva o Antigo Testamento e lance uma praga impossível de conter sobre todas as plantações destinadas à produção de cocaína, crack e similares, e transforme em estátuas de sal todos os que se beneficiam delas. Ah, e que faça cair os dedos dos pedófilos, também. (Só não peço para marcar os corruptos na testa com um C, porque são tantos e tão bem situados socialmente que o C iria acabar virando moda de passarela...)
Convença, também, o seu Filho a tocar o coração dos banqueiros, executivos, grandes empresários e autoridades públicas para que não queiram mais dinheiro com sacrifício da vida do povo. Para que entendam que a vida é mais importante que a riqueza e que, sobretudo a vida humana, não pode ser destruída pela avareza.
Sugira ao Espírito Santo que espalhe seus raios de sabedoria sobre a cabeça dos políticos paraenses, porque assim pode ser que eles se infiltrem através de seus crânios duros e insiram alguma coisa que não seja voto, eleição e demagogia em seus pensamentos. Não ouso pedir-lhe que sugira ao Santo Espírito que promova um debate pluripartidário que resulte numa aliança em favor do povo paraense: eu sei que a sabedoria precisa de tempo e seria um milagre grande demais para a nossa pouca importância que os políticos compreendessem logo a urgência disso. Mas, Senhora, um raiozinho que seja melhoraria tanto a vida da gente!
Eu sei que argumentar com a Trindade Santa não deve ser fácil. Mas, olhe, há razões: as prisões estão superlotadas, o sistema de saúde não funciona e as pessoas continuam morrendo de endemias há muito controladas no mundo; as escolas viraram depósitos de crianças e adolescentes; a lama e os esgotos contaminam quase tudo nas nossas cidades; a droga mata a curto, médio e longo prazos; a comida está muito cara e ainda por cima vão matar o rio Tapajós! Não é possível que pelo menos uma das Três Pessoas deixe de se aliar à Senhora para proteger os seus afilhados! Uma delas que atenda um desses pedidos que faço já melhoraria tanto a nossa vida que, Senhora, com certeza diminuiria o seu trabalho de atender as preces desesperadas que lhe sobem, todos os dias, desta terra, pedindo para que reduza a dor e a aflição.
É muito o que lhe peço, tenho consciência disso e também de meu pouco merecimento para tantas graças. Mas, Senhora, é seu povo, e merecimento tem a Senhora, de sobra, para que a Santíssima Trindade considere suas preocupações e sua compaixão. A Senhora, que arrastará multidões às ruas para cantar e rezar nesta semana do Círio, é quem tem mais chance de ser ouvida pela unidade trina.
Valei-nos, Nossa Senhora!

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Propaganda

Dizque a propaganda é a alma do negócio. Alguns corrigem a palavra “alma” para “arma”. Eu penso que a alma do negócio é a qualidade (que, em alguns casos, envolve quantidade, também) ou, na falta desta, a ausência de concorrência. Ou o cartel.
Sendo arma ou alma, porém, eu queria saber quem foi que inventou algumas abordagens publicitárias tão repetidas que parecem mitos.
A primeira delas é a de que é gritando que se vende. Tem gente que põe treme-terra na porta da loja e tem gente que grita na televisão. Grita tanto e de tal maneira que ninguém entende o que dizem. Outra é a história do 99 centavos. Dizque a pessoa entende os 99,99 como abaixo de cem. E também porque a tabuada dos 9 é a mais difícil para dividir. Ambas as abordagens são traiçoeiras: operam bem no limite entre a boa e a má-fé, a zona cinza entre o legítimo e o ilegal. Talvez funcionem: mas, na minha cabeça, para funcionar como alma ou arma do negócio, a propaganda deve considerar o seu alvo. A inadimplência é, em boa parte, consequência dos atos de um consumidor iludido: a venda pode até ter batido recordes na saída da mercadoria, mas não se completou.
Entre esses mitos do limite da legalidade está a propaganda com asteriscos, abundante na internet e nos panfletos de bancos e cartões de crédito. Asterisco num anúncio é como letra quase invisível num contrato: leia, ou você vai se dar mal. Um dia destes peguei um panfleto que tinha um rodapé de oito centímetros em letrinha miúda só para traduzir os asteriscos da parte de cima. Em resumo, todas as vantagens apontadas tinham restrições, reservas e algumas de tal ordem que a vantagem sumia, devorada pelo asterisco.
Há uma outra abordagem mítica, também, só que inversa: palavras vazias ditas com uma solenidade que lhes dá idéia de conteúdo. Uma das mais recentes – e caras – é o mote da Caixa Econômica, “a vida pede mais que um banco”. É uma frase oca, porque é óbvio que um banco não resume uma vida. E o pior é que a única coisa que a vida quer de um banco, o respeito e a consideração, a transparência nas operações, a cesta tarifária justa, não tem. Em nenhum deles.
Nesse capítulo das palavras vazias destaque especial vai para a propaganda de celulares. Em sua maioria, alinham uma enfiada de siglas e números que o consumidor precisaria estar plugado num computador para entender o que diz o anúncio. O engraçado é que a compra do celular é decidida pelo tamanho do bolso: todo usuário tem seu sonho de consumo, mas raramente compra o que não pode pagar, tenha o celular os recursos que tiver. E muita gente escolhe o celular pela probabilidade de assalto: quanto menos desejável, melhor.
Curioso é o fato de que há muitos cerceamentos à propaganda: um dia destes estava olhando uma coleção de anúncios antigos que hoje não poderiam ser veiculados, por serem politicamente incorretos. No entanto, a proibição de publicidade de cigarros não lhes diminuiu a venda (e nem o contrabando). Todas as advertências colocadas nas latas de leite em favor do aleitamento materno não diminuíram as vendas de leite para bebês. Recentemente as revistas infantis foram obrigadas a identificar o material publicitário veiculado nelas. A medida não vai alterar as vendas, até porque cria um halo de honestidade em torno do anúncio. E um anúncio honesto é a melhor ferramenta de vendas que existe.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O mensalão e o sistema

Garcia Roza, um dos raros escritores policiais brasileiros, põe na boca de seu personagem, o delegado Espinoza, a observação de que a principal função da polícia no Brasil é não permitir que o terceiro mundo invada o primeiro.
Estes dois Brasis vêm-se tornando mais nítidos ultimamente, e a imagem do Palácio do Planalto cercado por escudos e tonfas é o melhor emblema do que o escritor quis dizer. Mais sutil, mas não menos simbólico, é o julgamento do mensalão.
Quantos anos, já? E o Supremo Tribunal Federal discute, com doutrina, jurisprudência e juridiquês, a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição, ou seja: o direito a um novo julgamento quando a margem de votos pela condenação é estreita.
Deliberadamente se omite a prerrogativa do foro privilegiado que garante a algumas autoridades o julgamento exclusivo pelo Supremo e, no primeiro mundo do judiciário brasileiro, em quase todos os casos a ele submetidos, a impunidade. O mensalão é uma exceção, talvez pela extensão do dano causado, talvez pela escala de corrupção que envolve. No entanto, o foro privilegiado, que permitiu a todos os acusados não passarem pelas salas de espera de um fórum qualquer, agora é considerado também insuficiente. Quantos anos, mais?
O julgamento revela o sistema. E o sistema é perverso.
Há aproximadamente 200.000 pessoas presas sem julgamento no Brasil, quase a metade da população encarcerada. Elas suplicam por um julgamento que lhes fixe a pena ou reconheça sua inocência. Os doze do mensalão já tiveram o seu. Não lhes basta: acabam de conseguir mais uma dilação para começarem a cumprir penas, que não podem mais serem reduzidas, de até 14 anos de prisão. O peso e a medida são diferentes no primeiro e no terceiro mundos do Judiciário brasileiro.
Há mais de 500 ações penais envolvendo políticos com foro privilegiado esperando julgamento pelo Supremo. Entre 2007 e 2010, o Supremo julgou 132 ações – com apenas seis condenações – o que resulta em 33 por ano, em média. Serão necessários mais de 15 anos para julgar só o que falta. E este é o sentido do foro privilegiado, embora mascarado pelo argumento invertido: se corressem todas as instâncias, os processos não terminariam nunca, alegam os defensores do privilégio. Mas, no privilégio do Supremo, são poucos os que terminam.
Problema do sistema ou problema nosso? É fácil lançar as culpas nas generalidades: o sistema, o povo, a lei. No entanto, temos uma legislação considerada civilizada. A questão é o que fazemos – ou não fazemos – com ela. Nossas leis são de primeiro mundo, mas vivemos no terceiro. Esse conflito, percebido por Garcia Roza na sua manifestação mais dramática, que é o crime e seu combate, permeia tudo: simplesmente, da Presidência da República ao adolescente que vota pela primeira vez, de uma forma ou de outra se descumpre a lei. À margem da legislação se desenvolveu uma longa prática de dribles e de contornos, quer na administração pública, quer na vida privada.
A lei no Brasil não é uma norma impositiva para todos: quase sempre ela é apenas uma referência, para ser usada quando convier ao interessado. O normal é infringi-la. Assim, a Presidência da República toca suas obras sem projetos e sem licença ambiental – vale para os outros, para si, não. Assim, motoristas amadores tecem teias de comunicação por celular para evitar bafômetros na madrugada. Assim, o dono do bar sobe o som por toda a madrugada e só baixa enquanto a polícia estiver presente. Assim, o administrador burla a licitação. Assim, o gerente do supermercado deixa na gôndola os produtos com validade vencida. Assim, o professor termina a aula mais cedo, todos os dias. Assim, o assalariado recebe em caixa dois, para não declarar imposto e nem pagar a Previdência. E por aí afora.
Essa massa de ilicitudes deriva do fato de que a lei brasileira é absurdamente divorciada da realidade. Temos vergonha de sermos como somos. Então, no papel legal, somos um povo cuidadoso com seu meio ambiente, que combate a corrupção a todo custo, que toma medidas até radicais para respeitar os direitos de todos; somos primeiro mundo. Fora dos códigos existe um terceiro mundo, duro, difícil, violento. Damos nosso jeito: esse jeito pode ser um processo que não termina nunca.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O cardápio do Círio

Hora de montar o cardápio do Círio. Um mês antes? Sim, um mês antes. Há quem more no percurso da procissão e cumpra a tradição de abrir a casa para parentes e amigos; estes vão precisar de alimentos leves e sucos. Há quem faça almoços, assim, no plural: o almoço da família matriz, em que irmãos, chefes de família eles também, se congraçam com os pais, na sexta ou no sábado; e o almoço da própria família, no dia da festa. E há, naturalmente, o almoço do dia.
As opções são paraenses, mas nem sempre típicas. Este século com mania de magreza e complexo de colesterol acaba permitindo (ou forçando) pratos ditos saudáveis, em que a gordura é reduzida ao mínimo. Não tem importância: o Pará permite.
Para começar, a comida para o lanche durante a procissão, preocupação de quem abre a casa para convidados. Pode ser um simples cafezinho, trazido de Limoeiro do Ajuru. Ou frutas: abacaxis de Salvaterra, jambos de Santa Isabel, laranjas de Capitão Poço, mangostão de Santo Antonio do Tauá, muricis de Afuá.
Delicadezas: alfenins de Alenquer, rosquinhas com a castanha do Pará de Marabá ou com a tapioca de Capanema. Sucos com o bacuri de Augusto Correa, o cacau de Altamira, a acerola de Aurora do Pará e o cupuaçu de Vigia. E água mineral de Terra Alta.
Conforme a hora, os aperitivos para quem reúne antecipadamente: bolinhos com piracuí de Santarém ou com surubim de Marapanim. Empadas com frango de Santa Isabel. Palmito de Muaná. Castanhas de caju de Tailândia. Queijo de búfala de Soure ou Peixe-boi.
O almoço tradicional leva maniçoba, feita com carne de porco de Benevides, maniva de Bonito e linguiças de Rio Maria. E patos de Cametá no tucupi de Maracanã com jambu de Marituba. Tudo acompanhado por farinha de Bragança e arroz de Palestina. E arrematado por açaí de Ponta de Pedras.
Um almoço mais leve pode conter costelinhas de tambaqui de Oriximiná, caranguejo de São Caetano de Odivelas, pescada amarela de Viseu, pirarucu salgado de Monte Alegre no coco que vem de Salinópolis. Ou pirarucu frescal de Conceição do Araguaia com bananas fritas de Itaituba. Como opção, filhote de Gurupá e camarões de Abaetetuba.
Cardápio vegetariano? Não seja por isso! Alfaces de Ananindeua, soja de Novo Progresso, massas de Castanhal, pepinos de Inhangapi, milho de Monte Alegre, tomates de Aurora do Pará. E palmito, desta vez de Breves. Com queijo de coalho feito em Traquateua.
Qualquer cardápio precisa de temperos. Não nos faltam. Pimentas: do reino, de Tomé-Açu, dedo de moça, de cheiro, malaguetas, do Acará; salsinha e coentro de Belém.
E qualquer cardápio precisa de sobremesas. Salada de frutas, por exemplo, à paraense, com abacate, abacaxi, abricó, banana, kiwi, laranja, mamão papaia, manga rosa, melancia e tangerina, temperada com suco de maracujá. Todas produzidas aqui. Cremes, mousses ou sorvetes de cupuaçu, bacuri, graviola, coco e maracujá. E, claro, nossos pastéis de Santa Clara com recheio de cupuaçu.
Minha Nossa Senhora! Quanta riqueza!

terça-feira, 10 de setembro de 2013

A diplomacia em xeque

Parece que a rede mundial de computadores também deixou de cabeça para baixo o mundo diplomático. Nestas duas últimas semanas, o Itamarati foi posto em xeque duas vezes e a Síria faz o mesmo, mas com o mundo todo.
O primeiro caso é o de Eduardo Sabóia. Uma coisa esquisita, opaca, difícil de engolir. Como a diplomacia é um universo muito pouco transparente, talvez que por lá a coisa se explique. Sabóia alegou razões humanitárias, o que, provavelmente, é verdade (ele é católico praticante e a religião praticada explica muita coisa). Mas não dá para acreditar que um encarregado de negócios consiga manter um sigilo absoluto sobre uma operação complicada, envolvendo mais de uma dúzia de pessoas e, sobretudo, o pessoal da Embaixada – seus adidos e seus arapongas. Impossível a informação não ter chegado ao Itamarati, e é isso que torna tudo muito esquisito. Mais esquisito ainda foi a Bolívia ter absorvido tão bem o episódio, aceitando a saída do ministro brasileiro como reparação suficiente. O Itamarati falou de quebra de hierarquia (o que me fez rir, porque não havia nenhuma ordem terminante para o encarregado) e a presidente, de por em risco a vida do asilado (também me fez rir, porque para um sujeito que está no tudo ou nada, é melhor correr risco agindo do que parado). Mas há alguma coisa que não foi dita. Uma operação boliviana de sequestro de Molina, por exemplo?
O segundo caso é o da espionagem americana. Dá vontade de dizer: Cruzes, como nossos diplomatas são ingênuos e desinformados! O problema da presidente é que eles não são assim – a diplomacia brasileira é considerada, no mundo inteiro, como hábil e competente e os países não costumam subestimá-la. Então ninguém sabia dessa história divulgada agora? Ora, durante os 50 anos da Guerra Fria tanto os serviços secretos como os diplomáticos do Brasil e dos Estados Unidos atuaram em conjunto. Evidentemente que cada qual tinha sua zona de reserva, mas o entrelaçamento de atividades nesse período foi grande demais para que tenha sido eliminado. Bem, o assunto foi para a rua. O primeiro problema da presidente é como manter incólume o fluxo de informações que vem do Norte, do qual se beneficiam, entre outras, a Petrobrás. Uma retaliação nessa área é a última coisa que a diplomacia brasileira quer. A reação é para brasileiro ver – mas é preciso que haja, para manter de pé valores antigos, como a independência. No Brasil, onde grampo telefônico é o principal instrumento de investigação policial, hackeragem na internet bate recordes mundiais de ocorrências e se oferecem alguns milhares de artigos de espionagem (escuta clandestina, câmeras de infravermelho e que tais) todos os dias pelo comércio eletrônico, saber da espionagem americana foi o mesmo que constatar que o sol brilha. Porque a rede mundial de computadores tornou as pessoas públicas absolutamente públicas, da medida do pé ao tamanho do fio de cabelo. E está derrubando as velhas fórmulas diplomáticas de forma arrasadora.
Como está acontecendo na Síria. O malfadado ataque químico foi esclarecido em menos de três dias. Difícil aceitar que um ser humano, médico oftalmologista pós-graduado em Londres, mande atirar um inferno de gás venenoso sobre seus compatriotas, mas este ser existe e é Bashar al-Assad. Ele literalmente herdou o governo sírio de seu pai; e está destroçando o país. A velocidade com que se esclareceu o ataque forçou os diplomatas dos países mais poderosos do mundo a correr: desta vez, não houve troca de notas. As negociações, por telefone, pela internet, em terminais próximos ou remotos inauguram um novo fazer diplomático: cara a cara, e rápido.
Xeque na diplomacia tradicional. Talvez até txeque mate.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

O cão mais querido

Ele é branco, com malhas marrons. Circula pela rua com uma orgulhosa coleira de peitoral azul, que não se engata em guia alguma: mera elegância canina combinada com a prudência do aviso que o cão tem quem se interesse por ele, porque dono, mesmo, ele não tem. É puro vira-lata: independente, com boas presas, capacidade de discernir sozinho e corretamente quanto avançar e quando correr, um bom faro para fêmeas e o espírito de explorador que faz com que reviste criteriosamente todas as calçadas, montículos, gramados, portões e portas do quarteirão.
Jamais late à toa, bem diferente dos nervosos espécimes que passeiam de manhã cedo, firmemente presos a um humano qualquer. Ele confere ao nervosismo dos lulus um silencioso desprezo, expresso pela imobilidade e um olhar dirigido diretamente para a próxima esquina, embora o cachorrinho saltite em torno dele. Todos os dias eu cruzo com a sua indiferença, apesar do cheiro do meu cachorro nas minhas roupas. Ele não pede afago e nem procura contato. Basta-lhe estar por perto e existir. Claro, alguém lhe dará um banho, outro alguém, comida. Quanto à água, ele se vira.
É um cão querido, mas não se dá o direito de, por isso, aproximar-se demais das pessoas. Seu instinto de vira-lata não permite. Mal ele sabe que a vizinhança não seria a mesma se ele se ausentasse.
Num destes domingos uma fantástica reportagem mostrou um lulu como o mais querido do Brasil porque tem dois mil e tantos registros na nobiliarquia canina. A tolice da reportagem não considerou que esse número de registros é absolutamente irrisório quando se considera os 33 milhões de cães que se estima existirem no Brasil, a maioria deles muito amada, anônima e mestiça como esse cão malhado que me atravessa as manhãs. Lulu da Pomerânia? Rá, diria o José Simão.
Às vezes eu penso que falta assunto para a revista de domingo e, às vezes, que falta critério. Ou o esforço de exatidão que faz o drama e a glória do jornalismo. Eu fui solidária com o cachorro malhado: desliguei a tevê.
É verdade que eu já andava irritada com o programa, por causa daquela série, copiada sem pudor da tevê americana (ou talvez comprada, não sei) de criar falsas situações para ver a reação das pessoas. Essa série pega pesado em coisas muito sérias. Expõe pessoas de boa fé e mente desavergonhadamente. Ou alguém acredita que a reação negativa não existe e não foi deliberadamente cortada da exibição? Meço por mim: se acontecesse comigo, no mínimo o repórter ouviria meia dúzia de desaforos. Porque fabricar fatos é desacreditar completamente o jornalismo e transformar o cidadão em palhaço.
Afinal de contas, dignidade é um atributo indispensável. Também para cachorros. E, embora o mui digno cão malhado de peitoral azul brilhante não saiba o que passa na tevê, faço questão de dizer que é ele, o vira-lata, o cão mais querido do Brasil.
Espionagem, uma pergunta:
O Brasil tem espiões?

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Mais médicos: algumas perguntas

Bem, o governo queria os cubanos e os cubanos vieram.
Por conta desse contrato o Brasil vai transferir para Cuba R$1 bilhão, aproximadamente, em quatro anos. O aluguel de médicos é hoje a principal fonte de renda de Cuba. Há cerca de 17 mil deles desempregados lá – pelo menos é o que diz o governo cubano. Então, se faltam médicos no Brasil, se sobram médicos em Cuba, junte-se comida à fome e tudo resolvido. Assim pensa a ONU, assim pensou a Organização Panamericana de Saúde, a OPAS.
Mas há um bicho-grilo plantado na minha cabeça com essa história. Aliás, alguns deles cricrilam sem parar. Aí eu tenho que perguntar.
Em 31 de janeiro de 2012 o Brasil firmou com Cuba uma dúzia de documentos, dos quais dez foram ajustes aos acordos de cooperação já existentes, alguns deles na área de saúde e biomedicina. Esses documentos podem ser consultados nas páginas do Itamarati. Um dos ajustes me chamou atenção: trata de pesquisa clínica sobre câncer. O Instituto Nacional do Câncer apresenta o ajuste na sua página na web como um passo para o desenvolvimento de alguns tipos de medicamentos e outro passo para a inclusão da rede de laboratórios de Cuba na rede de pesquisa brasileira.
O bicho-grilo na minha cabeça pergunta: porque nessa oportunidade não entrou em pauta a contratação dos médicos? Não será porque a candidata à reeleição navegava em águas tranquilas e não havia necessidade de socorrer o povo?
Eu não sei responder, e o bicho-grilo pergunta de novo: existe ou pode existir alguma relação entre esses médicos cubanos que chegam e a pesquisa clínica para medicamentos? Alguém examinou esse assunto? Os médicos cubanos poderão participar livremente no Brasil de pesquisas clínicas para os seus laboratórios? Eu não consegui descobrir a resposta.
Nas listas de municípios apresentadas pelo Ministério da Saúde, o Pará aparece com quase todos inscritos, 79 municípios considerados prioritários e, finalmente, 24 selecionados. Destes 24, Ananindeua, para onde vão três médicos, e Benevides, para onde vai um médico, não são prioritários. Essas listas levaram meu bicho-grilo a perguntar, primeiro, o critério de prioridade. Porque não foi a pobreza absoluta nem a demanda reprimida que escolheram esses municípios, ou todos os polos regionais estariam incluídos – e só Santarém e Bragança estão – ou todos os municípios mais pobres estariam, e vários, como Abel Figueiredo, não estão. Bem, virão os cubanos, agora. Há 701 municípios brasileiros pedindo médicos, dos quais 55, os prioritários não escolhidos, no Pará. Mantida a proporção de 7% para a demanda, deverão vir para cá 280 médicos cubanos. A segunda pergunta é: quem vai distribuir esses médicos?
Eu não acredito que esse programa vá dar certo. Pelo menos para nós, neste Norte longínquo e desconhecido do Brasil, onde as distâncias se medem em dias de viagem, onde há sempre selva – ora de pedra, ora de árvores - e a infraestrutura de saúde é extremamente precária. Só lamento pelo bilhão de reais que vai para Cuba (meio bilhão até fevereiro do ano que vem). Como nós precisamos dele!
Quanto ganharão?
Um piteco na curiosidade nacional: quanto ganhará um médico cubano? Eu dei uma olhada na ONE, a Oficina Nacional de Estadisticas de Cuba, na publicação estatística de 2012. Lá, no capítulo de emprego e salários, revela-se que a remuneração média do setor é de 414 pesos – 995 reais, ao câmbio oficial do Banco Central de 27 passado. Alguns depoimentos, em outros espaços na rede, falam de uma remuneração de 650 pesos – R$1.500,00, pela mesma taxa cambial do BC. De qualquer forma, considerando que o salário mínimo em Cuba (o que depende do setor) é de 350 pesos, o salário não vai ultrapassar os 700 pesos o que, mesmo somados aos bônus em moeda forte dados pelo governo, poderá chegar aos R$2.000,00.
Ontem foram disponibilizados os documentos referentes ao acordo com a OPAS, a Organização Panamericana de Saúde. Está previsto o pagamento de bolsas (cláusula segunda, item II da alínea (o)). O programa é específico para os médicos cubanos, que terão direito a moradia, transporte, especialização de três anos prorrogável por igual período em universidade pública (pelo jeito, Cuba não é tão boa de medicina assim; e é esquisito isso, porque o programa é previsto para durar 4 anos). O plano de trabalho do acordo prevê somente 4 milhões de reais para serviços de terceiro, pessoa jurídica, contra R$469 milhões de pagamentos a pessoa física. Como é que a OPAS vai passar esse dinheiro para o governo de Cuba? A legislação brasileira não permite terceirização dos pagamentos previstos para pessoa física. Além disso, o orçamento cubano para 2013 (pode ser visto na mesma ONE) prevê uma entrada de aportes não tributários de 12,8 milhões de pesos – algo em torno de 30 milhões de reais.
O que está no papel é diferente do discurso feito. O que está no papel é que os pagamentos dos médicos vão ser feitos no Brasil. Anteontem, a ministra cubana disse que os médicos receberão entre 40% e 50% da bolsa. Ou seja: deverá ser feito um desconto em favor do governo cubano dessa metade de bolsa. Uma conta simples com os números que estão no plano de trabalho do acordo com a OPAS chega a R$10.000,00 por médico. Eles vão receber o contracheque com o total mas só a metade do dinheiro na conta. A outra metade vai para Cuba. O plano prevê cumprimento de 45% neste ano, ou seja, 1.800 médicos. Pelo sistema de desconto, Cuba receberá 21,7 milhões de reais (se descontar 50%; se descontar 60%, será mais), cerca de 10 milhões de pesos, segundo a conversão de moeda do Banco Central. É quase todo o aporte não tributário previsto em seu orçamento para 2013.
Então os médicos vão ganhar uma bolsa de cerca de 5 mil reais e uma remuneração em pesos equivalente a R$1.500,00.
Marx deve estar se retorcendo no túmulo com semelhante aluguel da força de trabalho em seu nome...

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O lucro imoral do BB

Na semana passada a imprensa noticiou o que pode ser sintetizado pela nota da Exame.com:
São Paulo - O Banco do Brasil teve lucro líquido de 7,47 bilhões de reais no segundo trimestre, cerca de duas vezes meia acima do resultado positivo obtido um ano antes, impulsionado pela venda bilionária de ações de sua área de previdência, seguros e capitalização, BB Seguridade. O banco ainda anunciou dividendos de 2,177 bilhões de reais, ou cerca de 0,7769 real por ação, relativos ao segundo trimestre, que serão pagos em 30 de agosto.
Desses dividendos, R$1,8 bilhão serão pagos à União Federal, que detém 51% das ações. O Banco do Brasil festejou, o governo também.
Eles não perguntaram o custo social deste lucro bilionário. No capitalismo fordista que caracteriza este governo, a selvageria do lucro a qualquer preço não permite esse tipo de questionamento. Mas, embora o pragmatismo tenha sua ética, não é possível eliminar os fatos, e os fatos mostram que este lucro é imoral.
É imoral porque o Banco do Brasil é uma empresa estatal. Essa condição o obriga a considerar, juntamente com sua sobrevivência e rentabilidade, a sua responsabilidade perante qualquer cidadão – e não somente seus acionistas, pequenos ou grandes, funcionários ou não. Para conseguir seus 2,177 bilhões em dividendos, o Banco do Brasil sacrifica o cidadão, principalmente seus clientes, com:
- o conto do vigário dos títulos de capitalização, em que o pequeno investidor sempre sai perdendo. Há muito que especializados em investimento – pessoas, revistas, jornais e associação de consumidores – denunciam esses títulos. O Banco Central faz ouvidos moucos porque eles são uma mina de ouro para os bancos. A justiça se faz cega. E os bancos estatais reagem com o clássico “se todos fazem, fazemos nós também – é a regra do mercado”. É a regra do predador. A presa que se dane.
- o sucateamento geral do banco. O BB se apresenta como dispondo de uma imensa rede de caixas eletrônicos. Num dia normal, grande parte não funciona e no restante, grande quantidade funciona mal. Ir a uma agência do BB é estressante, operar com o banco é irritante: ora é o sacrossanto “sistema” o culpado, ora é “a regra do banco”, ora é simplesmente falta de vontade.
- o acordo com as administradoras de cartão de crédito. O cartão de crédito é empurrado para o cliente que em momento algum é consultado sobre o assunto: ele pode deixar o cartão inativo, claro, mas se o cartão for furtado... As operadoras de crédito são proibidas de enviar cartões não solicitados para as pessoas. Mas, pelo jeito, isto não vale para o BB, que não fornece mais cartão livre de bandeira para os clientes que têm conta corrente.
- a extrema agressividade da política de metas por agência, que atira o gerente sobre o bancário e este sobre o cliente com todos os recursos possíveis e imagináveis para reter o dinheiro, empurrar moeda podre e vender o mais caro. Para tanto, valem as “medidas de segurança”, que limitam os saques e pagamentos, o máximo de juros nos empréstimos, sem opção para o freguês, e operações casadas sem conta, realizadas discretamente e sempre negadas.
Eu poderia ir muito mais longe no rosário, porque os 53 milhões de clientes que o banco alega ter não estão rezando satisfeitos. Mas ainda quero acrescentar outra coisa: o que é, de fato, responsabilidade social, que não se limita a pingar água aqui e ali pelo Brasil, nem ensinar alguns milhares de pessoas a ler ou abrir as dependências de seu clube para alguns deficientes, ou ter umas poucas agências “verdes”, coisas que o BB apresenta como grandes feitos. A primeira responsabilidade social é respeitar o cliente, mesmo que isso signifique um lucro menor. Principalmente o pequeno cliente, aquele do interior do interior, que só conta com um posto de serviço do banco e tem os mesmos direitos daquele que, na capital, é recebido no ar condicionado.
A segunda responsabilidade social é o de líder do mercado, menos pelo lucro e mais pela abrangência e pelas garantias extraordinárias que conta para operar: suas práticas podem alterar as regras deletérias. Por exemplo: se o BB der aos títulos de capitalização regras justas e rentabilidade adequada, os outros mudarão também. Quando o BB, mesmo de nariz torcido, baixou os juros, forçou uma baixa de juros geral no mercado. Imaginem se tratar bem os seus clientes! Seria um deus-nos-acuda para os outros bancos!
Finalmente é o BB entender que, se conta com o meu apoio e o de milhões de brasileiros para continuar estatal, não é somente para entregar 1,17 bilhão de reais para o governo federal e cerca de 400 milhões para os investidores estrangeiros que participam de seu capital acionário num segundo trimestre de um ano qualquer. Não é para ser o primeiro do ranking e o que dá mais lucro. É, principalmente, para ser o banco da confiança de todos. O banco exemplar. O banco que todos querem e merecem: o banco do Brasil.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A tribo nem-nem

Alguns estudiosos chamam de geração nem-nem. Acho a palavra “geração” muito ampla e muito injusta: a grande maioria de nossa geração de jovens está em outra. Chamo de tribo: a tribo nem-nem, composta de jovens com idades entre 16 e 24 anos, que não estudam nem trabalham. Estima-se que entre 15% e 20% dos jovens nessa faixa de idade participe da tribo.
Suas condições de vida são diversas: mães precoces cuidando dos filhos; jovens com algum tipo de deficiência, principalmente mental, entre outros casos específicos. Mas há uma grande quantidade de simples desocupados, que alguém mais rigoroso e desabrido poderia chamar de vagabundos.
Onde eles estão, é fácil saber: na rua. E em tudo o que se movimenta nela: torcidas, protestos, sereno de hotel de pop-star, praia, shows gratuitos. Eles moram geralmente na casa dos pais ou de um parente próximo. Não querem nada: largaram os estudos e, sob pressão, até arranjam algum trabalho ocasional. Falam de desemprego, mas jamais procuram sair dessa.
Nada demais – desde que o mundo é mundo que existem esses tipos e por causa deles que o sétimo pecado capital é a preguiça. O que me chamou atenção foi a quantidade: um quinto de toda uma geração se recusa a participar de qualquer tipo de produção. Evidentemente que na tribo nem-nem devem estar também delinquentes e bandidos – mas isso não é privilégio só dessa tribo. Qualquer professor pode confirmar isso.
Transição estrutural, talvez, como quer Wallerstein, cujo último artigo reproduzi na postagem passada? É verdade que há muitos registros históricos de, em épocas de crise econômica, jovens saem vagando sem rumo por seu país. Ou emigram. Mas o Brasil não está numa crise tal que ficar no mesmo lugar signifique morrer. Há oportunidades. Há mercado formal, há mercado informal. Há escolas, incentivos oficiais e privados. Eu penso que “transição estrutural” é um termo vasto demais para justificar isso aí.
A tribo nem-nem vive mal, tanto de corpo como de alma. Vive somente o presente e não pensa e nem quer saber de futuro. Nem por isso, tem filhos, que cuida mal ou entrega para adoção. Esmolam, trocam favores, furtam e odeiam qualquer disciplina, mesmo a brandíssima disciplina colegial de hoje. Literalmente desperdiçam a sua vida.
Ela está crescendo, essa tribo, segundo o IBGE, que tira os dados da Pesquisa Mensal de Emprego. Alguns dizem que a solução para eles está na educação, que me parece ser usada hoje como outra panaceia universal. O problema é que um membro da tribo nem-nem não quer saber de estudo. Aliás, não quer saber de nada que signifique esforçar-se por alguma coisa. É preguiça, mesmo.
E combater a preguiça é uma das coisas mais difíceis que existem. Tudo porque só a pessoa pode resolver esse problema. É como se livrar de qualquer outro vício: a primeira coisa necessária é querer. O que, para a tribo nem-nem, é complicado demais.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Os protestos e o mundo

Immanuel Wallerstein é um sociólogo norte-americano cuja principal obra, “O sistema mundial moderno” deixou-o como papa da antiglobalização. Ele põe na rua um artigo a cada dois meses, que são publicados no Brasil na revista eletrônica “Outras Palavras” (www.outraspalavras.com.br)
Transcrevo aqui o seu último artigo publicado nessa revista e traduzido por Gabriela Leite. Trata dos protestos de rua, sua conexão mundial e seus pontos comuns. Não concordo com tudo o que ele diz, até porque há coisas que ele faz questão de não considerar, mas é uma abordagem lúcida sobre o que está acontecendo.
O levante, agora persistente, na Turquia foi seguido por uma revolta ainda maior no Brasil, que por sua vez foi acompanhada por manifestações menos noticiadas, mas não menos reais, na Bulgária. Obviamente, esses protestos não foram os primeiros, e muito menos os últimos de uma série realmente mundial de revoltas nos últimos anos. Há muitas maneiras de analisar este fenômeno. Eu o vejo como um processo contínuo de algo que começou com a revolução mundial de 1968.
É claro que todas as revoltas são particulares em seus detalhes e na correlação de forças interna em cada país. Mas existem certas similaridades que devem ser notadas, se quisermos dar sentido ao que está acontecendo e decidir o que todos nós, como indivíduos e como grupos, deveríamos fazer.
A primeira característica em comum é que todas as revoltas tendem a começar muito pequenas — um punhado de pessoas corajosas manifestando-se sobre algo. E então, se elas “pegam”, coisa que é muito imprevisível, tornam-se maciças. De repente, não apenas o governo está sob ataque, mas, em alguma extensão, o Estado enquanto tal. Esses levantes reúnem tanto aqueles que querem a substituição do governo por outro melhor, quanto os que questionam a própria legitimidade do Estado. Ambos os grupos invocam o tema da democracia e dos direitos humanos, embora sejam variadas as definições que dão a esses dois termos. No conjunto, o tom dessas manifestações começa do lado esquerdo do espectro político.
O governo no poder reage, obviamente. Ou ele tenta reprimir as revoltas; ou tenta abrandá-las com algumas concessões; ou faz ambas as coisas. A repressão normalmente funciona, mas algumas vezes é contraproducente para o governo no poder, trazendo ainda mais pessoas às ruas. Concessões geralmente funcionam, mas algumas vezes podem ser ruins para o governo, levando as pessoas a ampliar suas demandas. De modo geral, os governos recorrem à repressão com mais frequência que às concessões. E, também grosso modo, a repressão tende a funcionar em um relativo curto prazo.
A segunda característica comum dessas revoltas é que nenhuma delas continua na velocidade máxima por muito tempo. Muitos manifestantes dão-se por vencidos após medidas repressivas. Ou são de alguma maneira cooptados pelo governo. Ou ficam cansados por causa do enorme esforço que as manifestações frequentes requerem. Essa diminuição da intensidade dos protestos é absolutamente normal. Ela não indica uma derrota.
Esse é o terceiro fator em comum, nos levantes. Embora terminem, deixam um legado. Mudam algo na política de seus países, e quase sempre para melhor. Forçam a entrada de alguma questão principal — por exemplo, as desigualdades — na agenda pública. Ou fazem crescer o senso de dignidade entre os extratos inferiores da população. Ou ampliam o ceticismo diante da retórica com a qual os governos tendem a encobrir suas políticas.
A quarta característica em comum é que, em cada onda de protestos, muitos que se unem ao movimento (especialmente os mais tardios) não chegam para reforçar os objetivos iniciais, mas para pervertê-los — ou para tentar conduzir ao poder político grupos de direita que são distintos daqueles que estão atualmente no poder, mas de maneira alguma mais democráticos ou preocupados com os direitos humanos.
O quinto traço em comum é que todos eles acabam envolvidos no jogo geopolítico. Governos poderosos, de fora do país nos quais os tumultos estão ocorrendo, trabalham intensamente (embora nem sempre com sucesso), para ajudar grupos aliados a seus interesses a alcançar o poder. Isso acontece tão frequentemente que uma das questões imediatas sobre cada movimento específico é sempre — ou deveria ser — saber quais suas consequências, em termos do sistema mundial como um todo. Isso é muito difícil, já que os desdobramentos geopolíticos potenciais podem levar alguns a desejar rumos opostos às intenções antiautoritárias originais do movimento.
Finalmente, devemos lembrar a respeito deste tema, e de tudo que está acontecendo agora, que estamos no meio de uma transição estrutural: de uma economia mundial capitalista que está se esgotando para um novo tipo de sistema. Mas ele pode ser melhor ou pior. Essa é a batalha real dos próximos vinte a quarenta anos. E a posição a assumir aqui, ali e em qualquer lugar deve ser decidida em função desta grande batalha política mundial.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

O papa

Para um argentino, a gramática deve ter sido o menor problema para falar em português. São alguns séculos de solene desprezo vencidos em uma semana: se nós entendemos com certa facilidade o espanhol, os falantes desta língua declaram, sempre, que têm extrema dificuldade para entender o português. O papa argentino mostrou que é só uma questão de boa vontade.
Apesar da disponibilidade para o diálogo, a entrevista foi de príncipe. De cartas marcadas, porque eu não acredito que o repórter que conseguiu a entrevista (e foi ele, porque se dependesse da Globo, seria um, ou uma, âncora) fosse incapaz de não aproveitar as aberturas que o papa deu para perguntas que trouxessem mais calor. E essa é a contradição do papado: uma estrutura principesca (no sentido hierárquico, aqui, não no sentido de riqueza) que, por definição, deve ser humilde.
A agenda foi plural, contemplou o máximo possível de segmentos sociais, num evento gigantesco, organizado e realizado coletivamente. Essa pluralidade, que abrangeu na maior parte do tempo os excluídos mas alcançou, também, os incluídos, foi novidade. E Francisco prosseguiu, silenciosamente, numa tarefa polêmica no seio da Igreja Católica, a desmitificação da pessoa do papa, o que, em síntese, consiste em: um homem foi sagrado papa, mas ele não é sagrado.
E, finalmente, o discurso. Uniforme no seu todo, trouxe, entretanto, dois pontos extremamente importantes, que talvez venham a ser a marca desse pontificado. Duas coisas novas, que de certa forma se completam: a primeira, a completa despreocupação com o proselitismo. A segunda, a união – ou reunião, conforme o caso – para o resgate dos miseráveis. A caridade antes de tudo, até mesmo da própria igreja. Para tanto, defende o Estado leigo e a recuperação da política como a arte do bem comum.
Essa postura é uma abertura para o mundo maior do que a feita por qualquer dos últimos cinco papas que o antecederam. Talvez não pudesse ter sido feita sem as ações e, sobretudo, a renúncia de Ratzinger, quebrando tradições pétreas e abrindo caminhos. E, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, trai uma fé no Evangelho dessas que movem montanhas.
A visita, em si, foi monumental. Uma demonstração do poderio católico que, por ter sido feito por meio do segmento considerado o mais afastado das igrejas, que é o de jovens, deixa entrever uma força que as estatísticas não revelam. É a mesma força dos ícones ortodoxos nas repúblicas comunistas: a Madona pode estar escondida no armário, mas está presente. No devido tempo, aparece.
O que a igreja católica no Brasil vai fazer com as novidades trazidas pelo papa, é difícil dizer. Há muito ela deixou de ser uniforme no pensamento e na ação. Está mais próxima de ser uma enorme rede religiosa, com princípios comuns e ideias divergentes. Mas uma coisa é certa: daqui por diante vai ser preciso tirar o chapéu para a Aparecida, que o tamanhinho dela é só aparência.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Ouso discordar

Alguém foi pra rua e não éramos nós!
A surpresa da autodenominada esquerda brasileira mostra o quanto se distanciou do que está acontecendo, de verdade, pelas esquinas e viadutos. Por seu turno, a autodenominada direita sofreu um choque: depois de anos de manobras domando rebeldias, a ponto de vestir os líderes antes radicais com suas grifes, descobriu de repente que só tinha conseguido um aceiro – e o incêndio isolado ameaçava voltar.
Os dois lados recorreram às mesmas fórmulas, que deram certo por tanto tempo. A direita abriu os cofres – do governo, lógico! – e a esquerda correu para a rua. Vamos voltar o filme!
No entanto os prefeitos vaiaram a presidente e as bandeiras vermelhas exibiram sua solidão em atos fragmentados e muito menores do que pretendiam – tão fracos que abriram espaço para saques e destruição.
E ninguém está satisfeito. Protestos ecoam por todos os lados, tirando do baú contas velhas e acrescentando novas. No Congresso, esquerda e direita correram atrás do prejuízo, aprovando ou rejeitando propostas sem maiores discussões e, portanto, insatisfatórias, porque inócuas em sua maior parte. No Executivo, as propostas são mais desastradas ainda: um ridículo e ilegal programa, chamado “Mais Médicos”, tenta encontrar um Cristo para as pedras da população e uma proposta mais ridícula ainda de reforma que não reforma nada, tenta acalmar os ânimos.
Não acalma. Hordas de bandidos descobriram que agir como faziam os hunos – saqueando em massa - é mais fácil que se arriscar no mão-armada individual de rua. Afinal, o Judiciário sempre exige que se prove que a mão que atirou a pedra pertence, sem sombra de dúvidas, ao réu ali presente...
Há algumas dezenas de anos que existe orçamento vinculado para saúde e educação. E o país inteiro reclama de saúde e de educação. A razão é simples: essas duas coisas não se resolvem somente com dinheiro vinculado e orçamentado, nem com médicos atirados de qualquer maneira no interior. Elas são um produto. Por trás delas está um patamar de vida: posto de saúde e pés descalços não combinam. Escola sem leitura em casa é instrutoria. Mas para ter pés calçados e leitura em casa é preciso dinheiro certo e trabalho dosado. Instrução sem renda resulta em doutor desempregado; e pés descalços no posto de saúde resultam em mortes em série nas UTIs infantis.
Discurso sistemático da esquerda quando na oposição, a reforma tributária com foco no aumento do poder local virou fumaça. E, em consequência, viraram fumaça também todas as esperanças despertadas pelo ativismo de esquerda: conselhos deliberativos, orçamento participativo, participação de lideranças... Os conselhos foram transformados em fóruns logo no primeiro ano do governo Lula. Conselhos são um calo, e o calo doeu.
Ouso discordar que deva haver mais recursos vinculados para educação e saúde. O Brasil precisa de terras demarcadas, vicinais trafegáveis, crédito barato ao pequeno produtor rural, seja ele familiar ou não, logística de abastecimento viável. Precisa desesperadamente de estradas – sejam elas de água, de ferro ou de asfalto – que permitam a circulação da riqueza e são, em última análise, o apoio real ao produtor de qualquer tamanho. Está devendo para a população água na torneira, o fim dos lixões e o tratamento de esgotos. Está devendo energia elétrica firme em 60% do seu território.
Ouso discordar que deva haver passe livre para estudantes. A razão é simples: os trabalhadores da base da pirâmide (os que ganham abaixo do mínimo, no mercado informal e no mundo rural) vão pagar uma parte desse privilégio. Eles não merecem isso. Como não merecem pagar quaisquer privilégios de que é farta a administração brasileira.
Ouso discordar que mascarados não devam ser presos assim que localizados numa manifestação e ficarem detidos, submetidos ao pente-fino da investigação, até que termine a passeata. Devem, sim. No caso, o tempo é fundamental para a potencialidade do risco. Não se pode brincar com ele.
Ouso discordar que a inflação reduziu o ritmo. Houve alguns suspiros de alívio, mas nenhum freio corretamente instalado para que ela desacelere. O segundo semestre representa sempre uma maré alta de consumo. A velha fórmula de juros altos e corte de gastos já não é suficiente para segurar essa onda. Em agosto, tudo voltará aos trilhos – e não exatamente como o ministro Mantega quer.
Ouso discordar que governos estaduais e prefeituras não saibam administrar. Pelo contrário: a participação direta dos governados permite muito mais flexibilidade e, é claro, muito mais fiscalização. Aliás, essa é a razão pelo qual os escândalos são tão frequentes nos municípios: é que eles são logo descobertos... Muito diferente do que ocorre no governo federal, onde poderosos lobbies operam tranquilamente. Onde a Previdência é uma caixa preta sem fundo.
Eu sei que vou receber algumas pedradas e que o que escrevo aqui pouco influi no todo. Mas vou seguir o conselho do papa e não me omitir.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Os médicos estão devendo

Antes de mais nada, quero esclarecer que sou contra essa história de contratar profissionais estrangeiros sem mais, nem menos, como se eles fossem resolver a assistência nos rincões obscuros da pátria amada, Brasil. Primeiro porque eu não acredito que eles vão se submeter a atender só com a cara e a coragem; segundo por uma questão de reciprocidade: os portugueses detonaram nossos dentistas, os espanhóis devolveram nossos turistas, os norte-americanos obrigam nossos profissionais a voltar para os bancos de escola, e por aí afora. Porque nós vamos abrir as portas assim? Quanto aos cubanos é vergonhoso que o governo de Cuba alugue mão de obra médica, igual a qualquer empresa de terceirização. Além disso, eu não acredito que um médico formado em Cuba seja melhor que um formado no Brasil.
Mas os médicos estão devendo. E a conta é alta. A fieira de reclamações que vai a seguir não é só minha – aliás, a minha parte é pequena nesse latifúndio. É o que ouço e o que vejo acontecer. E nem são as mais graves, apenas as mais comuns.
Horários: médicos se comportam no consultório como os donos do tempo. Marcam a mesma hora para todo mundo e acrescentam “por ordem de chegada”. Você passa no mínimo uma hora esperando o médico para uma consulta que raramente ultrapassa os trinta minutos. Eles alegam os horários corridos – mas se esquecem que os pacientes deles também têm horários, a maioria tem patrões exigentes e família para cuidar. Eles alegam a desistência do paciente para não marcar hora. Quando marcam, atendem com hora de atraso. De vez em quando não aparecem: quer no SUS, quer no plano de saúde, é comum o cliente voltar da porta. Essa irritação é continuada, pague você ou não a consulta. E não conheço nenhum médico que dê atenção a isso.
Atenção: a medicina pode ser de massa, mas a pessoa do paciente não é. Ouvi uma vez um médico comentar que poderia fazer uma consulta de rotina em cinco minutos. E eu acredito, porque já vivi uma consulta assim: o médico sequer levanta a cabeça para olhar o paciente; lê o resultado do exame, escreve a receita, e, sem uma palavra (nem mesmo bom dia) despacha o infeliz que paga a duras penas o seu plano ou que depende do SUS. Exames mal feitos, diagnósticos superficiais e frequentemente errados (posso contar uma ruma de casos que ouvi) e nenhuma disponibilidade para uma orientação relativa ao andamento do caso. Isto é agravado pelo fato de não se conseguir uma consulta imediata quando necessário. E que não me venham com explicações furadas: a grande maioria dos médicos não usa o cadastro de pacientes para acompanhá-los. Também não avisa as suas leoas de chácara que o paciente fulano tem que voltar em dois ou três dias. O resultado, muitas vezes, é terrível.
Excesso de pacientes: tanto no atendimento público como no privado, os médicos se entopem de pacientes. Já vi agenda de médico com cerca de 40 consultas marcadas num turno de 14h a 19h. O serviço público pode perfeitamente controlar a quantidade de pacientes por médico, fora das emergências – mas os médicos que gerenciam esses serviços não fazem isso. Quanto ao particular, só depende do médico receber ou não mais pacientes do que pode. Eu conheço alguns poucos que limitam sua clientela: são os melhores, com certeza, porque têm tempo para o paciente.
Gestão de serviços: os médicos são cuidadosos e criteriosos, com toda razão, em defender suas prerrogativas profissionais. Mas eu me pergunto: porque tanto médico se mete a administrar? Porque eles têm tanta dificuldade para respeitar a profissão dos outros? Um dia destes um poderoso conselho de medicina declarou que o problema do SUS é de gestão. Eu concordo, incluo nisso os planos de saúde – só que acrescento: são médicos que gerenciam o SUS e os planos. O desvio profissional faz com que eles não tenham paciência com as ferramentas de planejamento, com as soluções administrativas, com os cálculos de microeconomia e epidemiologia. Teriam que ser polivalentes para conseguir bons resultados numa praia alheia. Mas não entregam a praia. Vai daí que, tanto na área pública como na privada, há desperdício, inabilidade, burocracia em excesso e complicações sem conta, hospitais ruins e ambulatórios péssimos. E o pior de tudo: lentidão, que agrava os casos simples e complica os difíceis.
Isolamento: os médicos, em sua grande maioria, trabalham sozinhos. Raramente um médico indica um colega que possa atender em sua ausência, curta ou prolongada. No setor público isto significa que o paciente vai ficar sem atendimento. No setor privado, desorientação, com resultados às vezes desastrosos em caso de emergências. Muitos profissionais de outras áreas têm esse hábito de referenciar um colega. Mas os médicos simplesmente deixam o paciente às feras.
Volto a dizer que dou todo apoio à posição assumida pelos médicos com essa maluquice do governo federal de chamar estrangeiros a torto e a direito. Mas que eles precisam fazer um exame de consciência e mudar comportamentos, ah, sim, precisam.