segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Nós e os bichos

No convento de Santo Antonio, no Maranhão, os turistas podem conhecer a curiosa história dos padres franciscanos que, no início do século XVIII, moveram um processo contra as formigas que lhes roubavam a comida e ameaçavam derrubar o convento com seus túneis. As formigas tiveram um defensor designado; e tão bom que convenceu os juízes a simplesmente escolher um lugar novo para elas e, em seguida, ordenar que se mudassem, E, conta o padre Manuel Bernardes no seu livro “Nova Floresta”, elas se mudaram.
Os padres do Maranhão não estavam inovando: eles apenas repetiam uma prática medieval, já então caída em desuso na Europa, pela qual os animais eram processados e julgados. Touros, porcos e cavalos homicidas eram presos e julgados regularmente por um tribunal civil. E não eram mortos de qualquer maneira: eram executados por carrasco (que usava luvas para não sujar as mãos com a execução de um animal) na forca, com direito a escolta armada e carreta. As pragas da lavoura – ratos, insetos e sanguessugas – compareciam a um tribunal eclesiástico, representados por um defensor de ofício. Eram sentenciadas, advertidas, recebiam um espaço de terra para onde se recolherem (uma espécie de reserva para ratos ou insetos, que era periciada para que se soubesse se havia condições de sobrevivência para eles ali) e, se não obedecessem, eram excomungadas. Não raro, a população agricultora alvo da praga era advertida também, para que melhorasse os costumes, reduzisse os crimes e pecados, rezasse mais e... pagasse o dízimo em dia.
Há tratados jurídicos justificando estes procedimentos, que vigoraram durante toda a primeira metade do milênio medieval. A base fundamental desses tratados é o direito natural dos bichos à vida. A crítica ao procedimento judicial, que surgiu a partir do século XV, não discute esse direito: apenas considera que, não tendo os bichos razão nem juízo, submetê-los a um processo é uma inutilidade dispendiosa, visto que o processo existe – segundo os juristas de então – para que o réu tome consciência do seu crime e reconheça a sua punição, o que é impossível para um irracional.
Hoje, quando os direitos dos animais estão na ordem do dia, estas antigas práticas parecem ridículas mas, no processo dos padres do Maranhão, por exemplo, a petição inicial para intervenção do tribunal canônico exemplifica claramente que levava-se as formigas a juízo pelo fato de serem elas, como tudo o mais na natureza, tratadas como irmãs pelo fundador da Ordem Franciscana. E não pouco latim foi gasto pelos tratadistas medievais explicando o direito de defesa que deveria ter um bicho, mesmo homicida: era preciso provar sua culpa. A pena para o dono era a perda do animal, e não era uma perda pequena, se considerarmos a pobreza daqueles tempos.
Naquela época era possível, também, mandar as pragas para uma reserva. O caso do Maranhão não é o único e nem sequer raro. Atualmente, humanos e demais bichos disputam cada centímetro do espaço no planeta. Queiramos ou não, a quantidade de espécies exterminadas por pura impossibilidade de sobrevivência cresce a cada dia. Hoje, os banidos para espaços reservados não são as pragas: são quase todos os animais, transferidos para galinheiros, estábulos controlados, reservas selvagens ou, simplesmente, residências e apartamentos. A liberdade deles está quase no fim. Quanto às pragas, são, simplesmente, exterminadas. O que se vai com elas – animais consumidores de insetos, elos na cadeia alimentar natural – é difícil de mensurar. Mas é evidente que estamos a cada dia empobrecendo mais e mais a biodiversidade.
Por isso que é triste testemunhar a brutalidade com que o Brasil está se apropriando da Amazônia e o processo predatório instalado aqui, esgotando rapidamente tudo o que é renovável e sustentável. No próximo século muito provavelmente seremos nós, e não as formigas, que estaremos sendo severamente julgados. E já não haverá mais para onde ir.