domingo, 28 de dezembro de 2014

Em favor da utopia


Entre o Natal e o Ano Novo, o tempo é de utopia, mais que de festas.

Porque estas duas invenções humanas celebram o nascimento e o renascimento, ou seja, a esperança. E não há esperança sem utopia.

Conservadores usam a palavra utopia como um pejorativo com que qualificam o que consideram impossível e até ingênuo ou ridículo. Mas, frequentemente, têm que se render ao que achavam ser utópico: ao movimento pacifista, por exemplo, à participação das mulheres na política, à eletricidade... e muitas outras coisas que gente aparentemente sonhadora, mas na verdade de muita fé, ousou construir.

A maior utopia, a da sociedade perfeita, onde todos vivam em paz e harmonia, é buscada por todos: mesmo quem não acredita nisso tem um pouquinho de esperança. E é esta esperança que faz com que todos façam votos de paz neste período, mesmo se, no momento seguinte, insultem ou agridam. Um dia, talvez...

É impossível chegar à concretização da utopia, porque haverá sempre uma ambição a mais, um defeito a corrigir e, sobretudo, o fato de que a utopia de cada um é diferente da dos demais. Há pontos comuns, é verdade. Buscar estes pontos em favor da paz traz o sonhado para mais perto da realidade.

Minha utopia, neste momento, é limitada, mas tão difícil como qualquer outra: um 2015 melhor do que foi 2014. Sonho com isso porque não vejo que vá acontecer; mas a dificuldade já é ruim em si mesma, não precisa ser aumentada com terrores antecipatórios. Diante dos preços sendo reajustados toda semana; do sumiço das moedas divisionárias, do troco; do estouro iminente da bolha imobiliária com quebradeiras previsíveis; da possibilidade de perdermos nossa maior estatal; da violência extrema em que mergulhamos; dos nossos times de futebol em decadência – prefiro sonhar, sim, que de alguma maneira a inflação será domada, a bolha imobiliária será emurchecida suavemente, a Petrobrás resistirá, a violência diminuirá e nossos times encontrarão novos caminhos.

Haverá meios, por certo, que podem trazer minha utopia para mais perto da realidade, inclusive ações que eu mesma posso realizar, e, assim, agirei guiada por ela, o que me fará encontrar alguma felicidade no ano que se anuncia ruim.

E é isto o que desejo para todos: não desistam da utopia, guiem-se por ela e gozem os relâmpagos da felicidade possível na dura travessia do ano de 2015.


domingo, 14 de dezembro de 2014

Somos cleptocratas?


Uma pergunta martelando na cabeça – porque o povo elege determinadas pessoas mesmo sabendo que são corruptas – levou a outras perguntas, estas feitas diretamente a eleitores que me declararam seu voto nessas pessoas. As respostas tinham poucas variações: para alguns, o voto era de gratidão por diversos tipos de ajuda recebidos (furar uma fila no sistema de saúde, telhas para a casa ou bolsa de estudos para o filho) e, para muitos outros, o voto se justificava pela expectativa dessa ajuda. Uma resposta, entretanto, sintetizou tudo:

- Todos eles roubam. Esse daí, pelo menos, dá um pedacinho pra gente.

O que está claramente definido nesta frase é que o problema principal para esses eleitores não é o furto da coisa pública, mas estar fora da partilha desse furto. Secundariamente, a avaliação de que todos roubam é apresentada como uma premissa, uma verdade inquestionável: quem não se aproveita dos cofres públicos é tido como tolo e otário. Finalmente, a consideração de que o voto é um bem de valor econômico definido na expressão “pedacinho”: é um valor pequeno, flutuante, mas que pode ser perfeitamente negociado a fio de bigode, isto é, na base da palavra dada.

Este raciocínio é o mesmo que preside a planilha apreendida na Queiroz Galvão, instrumento mais sofisticado, mas que igualmente transforma a atividade política em bem de valor econômico. O “ProfPart”, que é a disponibilidade de recursos, dentro da margem de lucro admitida para a contratação de obra pública, para a doação a ser feita na próxima campanha eleitoral para partido ou político, é o mesmo pedacinho, aqui transformado em pedação matematicamente calculado, negociado a fio de bigode.

Entre o eleitor e a grande empreiteira está um enorme espectro de governos municipais e estaduais, pequenas e médias empresas, servidores públicos de muitos níveis. Neles pode ser encontrada com frequência “a cota do deputado (ou do vereador)”, na contratação de obras; o “está sobrando aqui, vou levar pra casa”, no material de escritório; o “use a merenda escolar na confraternização”; o “vou asfaltar primeiro a minha rua, afinal sou autoridade”; ou “o partido exige esta outra Secretaria; essa oferecida é irrelevante, não tem dinheiro”; “os deputados estão insatisfeitos, isso aí não dá para empregar os cabos eleitorais” – e assim por diante.

Parece-me claro que não é possível dissociar a atividade política da atividade econômica, embora as Universidades façam isso sem nenhum questionamento (por exemplo, ninguém trata de sindicalismo nos cursos de economia e nem de macroeconomia nos cursos de direito constitucional). Mas o Brasil não enfrenta o problema: prefere o caixa 2. Punhados de leis ditas rigorosas, mas fora da realidade, são burladas diariamente, gerando uma cultura que nos leva a conviver com a corrupção de forma natural.

Convivemos com dois preços: o “com recibo”, que inclui o pagamento dos impostos, para toda a atividade profissional liberal; o “com nota fiscal” e o “sem nota fiscal”, no comércio em todos os níveis, da padaria da esquina à loja de luxo. A pesada tributação brasileira responde por uma parte desse espírito sonegador, que é apenas um aspecto do caixa 2. Sim, porque é preciso um pouco de habilidade para movimentar recursos sonegados. Eles são tão produtos de roubo como quaisquer outros – o celular tomado no assalto ou os centavos a mais cobrados pela operadora de telefonia. Mas essa tributação exagerada não responde sozinha pela situação: a ela se alia a impunidade. A Justiça brasileira é tão ruim que pune a vítima antes de punir o réu. O país inteiro está vendo a diferença que faz um juiz – primeiro, Barbosa, e, agora, Moro – quando ele resolve agir. Mas a infinidade de tempo usada nos julgamentos anula boa parte do esforço e a existência de pesos e medidas diferentes, conforme o réu, torna o Judiciário inconfiável. Os réus do mensalão já estão fora da cadeia enquanto ainda penam, entre grades do Brasil inteiro, milhares de presos sem julgamento. E, entre eles, quantos inocentes haverá? Dinheiro (nem que seja para comprar a dedicação de um advogado) e prestígio político (para pressões, naturalmente), fazem diferença, sim, no Judiciário. E, quando isto acontece, está feita a terceira perna de sustentação da cleptocracia, o governo baseado no furto.

Geralmente as cleptocracias funcionam na contramão da democracia: com poucas exceções, tiranos e ditadores se apropriam da coisa pública com naturalidade e reprimem duramente quaisquer discordantes. Mas parece que se está gerando no Brasil uma outra forma de cleptocracia, a democleptocracia, em que há um pedacinho, ou pedação, para cada um no caixa 2, com valor de mercado sem o rigor matemático da Queiroz Galvão, mas perfeitamente definido. Em vez de repressão, corrupção miúda – é menos traumático e sai mais barato.

O Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional no colocou, em 2013, numa grande zona vermelha de corrupção, no lugar 72 entre 177. Realmente é difícil perceber corrupção numa cleptocracia em que o povo participa.


domingo, 30 de novembro de 2014

Para que serve a campanha eleitoral?


Não, eu não vou comentar o que todo mundo já sabe: que a presidente Dilma está fazendo tudo o que na campanha disse que não faria. Mas vou partir daí, desse fato, para, conjugando-o com outro – a natureza das despesas de 4,92 bilhões de reais gastos nas campanhas eleitorais das eleições de 2014 – abordar a pergunta que está no título desta crônica.

Na utopia brasileira, em grande parte expressa em ordenamentos legais dissociados da realidade, a campanha deveria servir para discutir as propostas dos candidatos. Deveria também ser um instrumento de visibilidade dos candidatos, de forma a proteger as candidaturas de partidos minoritários e levar ao cidadão o máximo possível de informação para que faça sua escolha livremente. No caso de candidatos ao Executivo, deveria espelhar o programa de governo dos candidatos que, apresentado à Justiça Eleitoral, baliza a proposta do candidato.

No entanto, a realidade é outra. Os programas de governo depositados na Justiça não servem para nada – talvez como razão de impugnação de candidatura se, por acaso, houver propostas contra as cláusulas pétreas da Constituição, como divisão do país, por exemplo. No mais, são peças literárias, desconhecidas até da equipe mais próxima do candidato. E não obrigam a nada.

Os conteúdos da campanha giram em torno do que Miguel Wiñazki chama de “notícia desejada”, ou seja, diz-se o que o eleitor quer ouvir, pouco importa seja real ou não. Os recursos cinematográficos permitem a criação de um mundo de ilusões, onde o que é feio é trabalhado para ficar horrível e o bonito, lindo. Nesse mundo ilusório, em que o horário eleitoral se assemelha à novela das seis, com trama superficial e mudanças abruptas do rumo da história, o tempo a ser usado se torna crucial, e, aí, a distribuição de tempo na tevê (ferramenta criada, aliás, para proteger as candidaturas de partidos minoritários) provoca o primeiro movimento para as coalisões majoritárias: não é o ajuste temático que reúne os partidos nesta ou naquela chapa, mas o agregado de tempo na tevê. Então, considera-se natural que um partido como o Democratas, que defende muitas bandeiras que o PT repudia, se junte a este numa coalisão eleitoral. É nessas coalisões que começa a verdadeira campanha eleitoral que, ao contrário do que quer a lei, passa bem longe do programa apresentado. Na realidade, na organização do tempo de tevê monta-se um time. Esse time vai disputar um campeonato, cujo troféu é o governo e sua base legislativa. E daí em diante, joga-se – para a torcida, que, sem ela, não há renda no campo de futebol nem votos na urna.

Quem ganha, leva. Se trapaceia, ou se, como aconteceu com Vanderlei Lima nas Olimpíadas, um fato estranho impediu alguém de ganhar, não interessa.

Mas, entre a composição do tempo da tevê e o final do campeonato há um bocado de dinheiro fluindo dos bolsos de uns para os bolsos de outros.  Esse dinheiro vem dos impostos, por via do chamado Fundo Partidário; e de particulares, quer sejam empresas, quer pessoas físicas. Os R$4,92 bilhões que circularam este ano, foram parar aonde?

Diz reportagem do portal UOL, da “Folha de São Paulo”:

A disputa eleitoral que teve a maior quantia de gastos foi ao cargo de deputado estadual (1,2 bilhão), da qual participaram 17 mil candidatos. Na sequência, as que tiveram mais despesas foram para os cargos de governador (R$ 1,1 bilhão) e de deputado federal (R$ 1 bilhão). Os gastos em publicidade representaram metade do total investido pelos candidatos na disputa eleitoral deste ano, seguidos por despesas com pagamento de pessoal e com custos de transporte.

O que são os “gastos em publicidade”? Na campanha padrão, cujo espelho está nas prestações de contas feitas à Justiça Eleitoral, são as despesas com produção de materiais impressos (cartazes, santinhos, banners, panfletos, jornais), peças para eventos (bottons, crachás, camisas, coletes, bandeiras) e, sobretudo, para a criação de marketing e a produção de programas de tevê (se o candidato tem uma produtora, ele vai ficar com a parte de leão do dinheiro da campanha; não sai no prejuízo, em nenhum caso). Essas unidades empresariais (agências de publicidade, marketing e relações públicas e as produtoras de tevê) é que dispuseram dos quase R$2,5 bilhões usados este ano para os gastos em publicidade, retendo consigo uma fatia que, segundo a tabela da Associação Brasileira de Agências de Publicidade varia de 10 mil reais (para verbas publicitárias empresariais de até 2,5 milhões) a 70 mil reais (para verbas superiores a 25 milhões) mas que, numa campanha, é acertada levando em conta a quantidade de candidaturas a ser atendida, o que deixa essa tabela como mera referência. Ou seja: se a agência vai atender uma legenda partidária com 60 candidatos a cargos proporcionais e dois a cargos majoritários, ela pode cobrar 200 mil reais (60 mil correspondentes às verbas publicitárias considerando cada candidato proporcional e 70 mil para cada candidato majoritário). O custo das produtoras varia. Segundo a Cinemátika, empresa especializada na produção de vídeos institucionais, um bom vídeo institucional custa de 15 mil a 40 mil reais. Como a produção de vídeos de campanha envolve atores, filmagens externas, uso de material cinematográfico e deslocamentos, vamos usar o máximo valor para uma estimativa, embora, com certeza, sejam mais caros que isso. Entre primeiro e segundo turnos, a campanha foi de 19 de agosto a 24 de outubro, com um intervalo de dois dias, ou seja, 75 dias. A 40 mil reais por dia, são 3 milhões de reais só para um candidato majoritário, só para uma produtora de tevê.

Bem, então temos a primeira resposta para a pergunta do título: a campanha serve para engordar as contas (ou fortalecer o setor, como preferirem) das agências de publicidade, gráficas e produtoras de tevê. De si mesmo, pagar as contas do mundo da mídia é justo e necessário. O problema está no que esse mundo da mídia está oferecendo.

Porque sem os vídeos a campanha seria quase inexistente, de tão chata. O Brasil já fez essa experiência, no tempo da ditadura, quando a campanha foi tão censurada que se limitava a um listão: foto, nome e número do candidato. As audiências das tevês da Câmara, do Senado e da própria TV Cultura mostram que o público não está interessado em debates, profundos ou não, sobre o seu destino ou sobre as questões nacionais, regionais ou locais. Até porque não entende a maior parte dessas questões - o jornalismo existe justo para decodificar linguagens e conceitos e torná-los acessíveis ao cidadão comum. Nos debates proporcionados pelas redes de tevê o jornalismo é engessado pelos marqueteiros nas reuniões prévias (tempo igual, temas) transformando tudo numa encenação casada com a ilusão produzida nos vídeos. O jornalismo impresso está, da mesma forma, cerceado, algumas vezes por si mesmo, outras pelo entendimento judicial sobre os crimes de opinião (escrever que um grileiro é grileiro pode condenar um jornalista, que o diga o Lúcio Flávio Pinto). 

Então, o que sobra? Motivação, diriam os marqueteiros. A campanha serve para motivar o eleitor.

Sinceramente, é muito dinheiro para tão pouca coisa. Afinal, na forma como está, a campanha eleitoral não serve nem para que se identifique quem é candidato a deputado. Quem quiser esta informação que consulte as listas da Justiça Eleitoral. A campanha não compromete o candidato, não informa quem são os candidatos, não se ancora na realidade e se limita a dizer o que o eleitor quer ouvir, o que pode ser resumido numa única frase: meu time é melhor que o teu.

Ainda sinceramente, acho que quem defende que o Tesouro Nacional pague as campanhas eleitorais não sabe do que está falando ou está falando de má fé. Eu, pelo menos, não quero que minha cota de impostos vá financiar um mercado de ilusões eleitorais. Também não resolve proibir as empresas de contribuir para a campanha – o que é normal em todas as democracias – porque será inócuo. Elas o farão de forma indireta; há milhares de meios de fazer isso.


Para que as campanhas eleitorais sirvam para algo mais que gerar um mundo de ilusão destinado a um campeonato, o caminho é outro. Passa pela mudança na distribuição do tempo na tevê, na liberação do jornalismo das peias em que está hoje, na substituição da exigência de um programa de governo pela identificação de princípios e diretrizes programáticos obrigatórios, cujo descumprimento possibilitasse a responsabilização do candidato. E passa pela liberação da propaganda de rua. Por acaso, o povo também tem o direito de se manifestar.

sábado, 15 de novembro de 2014

A tarefa mais importante


Alexandre Grothendieck morreu há dois dias. Ele era um cientista – daquela linhagem muito especial de cientistas que não se limitam à sua disciplina, mas alcançam a filosofia por uma via própria, longe da formatação universitária. Um dos mais importantes matemáticos do século XX, que redescobriu sozinho a relação entre a circunferência e seu diâmetro aos 11 anos, num campo de concentração nazista, queria que o esquecessem – mas, como? É dele o trecho que transcrevo a seguir, em tradução livre. Foi escrito para uma conferência em Paris, em junho de 1970, sob o título “A responsabilidade do cientista (savant, no original) no mundo de hoje”. E transcrevo porque se aplica ao Brasil de hoje e porque acredito que essa responsabilidade, se é principalmente dos acadêmicos, é também de todos e cada um neste momento brasileiro:

Questiona-se por todo o mundo os diversos perigos que ameaçam esta ou aquela comunidade humana, grande ou pequena. No ocidente capitalista é o espantalho do “perigo comunista” que ameaçaria a liberdade da pessoa e os valores de uma certa cultura burguesa (...). Às vezes acentua-se o “perigo asiático” (já um dos motivos recorrentes do hitlerismo antes da guerra) ou o “perigo amarelo” que ameaçaria a herança cultural do ocidente. (...) Nos países comunistas invoca-se o “perigo imperialista” que ameaçaria as conquistas do proletariado. Outros “perigos”, por serem mais localizados, não deixam de turvar menos a consciência de uma fração não negligenciável da humanidade, e servem de motivação ou pretextos para muitas injustiças e crueldades: o “perigo negro” na África do Sul ou no sul dos Estados Unidos, o “perigo sionista” nos países árabes ou o “perigo árabe” em Israel, para citar alguns.

O observador desse novelo de “perigos” complementares, aparentemente bem específicos e mutuamente contraditórios, não pode deixar de ser atingido por sua extraordinária semelhança de fundo, e a identidade deveria dizer-lhe: em cada caso é sentida e denunciada como “perigo” a existência ou expansão (efetiva ou imaginada) de um grupo humano percebido como diferente do grupo de origem, seja esta distinção de ordem religiosa, linguística, étnica (“racial”) ou econômica, ou política (i. e. concernente à organização da sociedade).

(...)

Pode-se chamar, por oposição à tendência “atávica” que acabamos de descrever, a tendência “racional” ou “ética” nas relações entre os grupos. Na sua forma mais evoluída, ela resulta no conceito de solidariedade essencial entre os seres humanos, quaisquer que sejam os grupos a que pertençam, conceito que pode ser encontrado já em antigos pensadores, anteriores à nossa era (p. ex. Lao Tse, Buda, e outros). O aparecimento dessa tendência “racional”, preliminar indispensável à formação de sociedades civilizadas, deve sem dúvida ser vista (juntamente com a linguagem) como a conquista mais importante do espírito humano – conquista que está longe de ser completa, como acabamos de ver. Deveria ser possível, numa abordagem dessas, ver a história da humanidade como a história da luta até agora incerta entre essas duas tendências opostas nas relações entre os grupos humanos.

(...)

Por esta razão, a tarefa mais importante e a mais nobre que se coloca para os homens é a liquidação deste reflexo ancestral, e a plena realização da solidariedade inelutável que liga entre si todos os homens, quaisquer que sejam os grupos humanos aos quais pertençam.

*****
Para saber mais sobre o pensamento (ou, quem sabe!, a matemática) de Grothendieck, procurar por Grothendieck circle na internet. Lá estão depositados seus principais escritos, entre os quais a conferência de onde foram retirados os trechos transcritos.


domingo, 9 de novembro de 2014

De reforma e de chacina


No final do segundo turno das eleições a Folha de São Paulo publicou um mapa relacionando votos e renda média municipal. De si mesmo, esta relação não significa nada. Mas trouxe para discussão o grau de dependência das populações para com as transferências diretas da União (previdência social, bolsas e auxílios) e revelou, pela primeira vez de forma fácil, a brutal pobreza das populações da Região Norte. Só para se ter uma ideia, a renda média municipal em Belém é pouco superior à menor renda média municipal no Rio Grande do Sul e menos da metade da renda média municipal de Porto Alegre.

Depois, muito se falou sobre país dividido. Sobre voto atrelado. Sobre população pobre e população rica. Sobre nordestinos e sulistas. Sobre preconceito. Mas, cuidadosamente, políticos e jornalistas evitaram a questão principal: o modelo de arrecadação e distribuição tributária. Este modelo, implantado na ditadura, despeja nos cofres da União 70% das receitas e nas costas dos estados e municípios 70% das despesas constitucionalmente obrigatórias.

Essa repartição de receitas está na base da incapacidade das prefeituras em resolver problemas, é o poço de onde os Estados tentam, em vão, sair, responde pela brutal pobreza das populações das regiões não industrializadas, torna o Norte cada vez mais periférico do Brasil. Os municípios cada vez mais dependentes da boa ou má vontade do governante de plantão. As populações penduradas na corda bamba da previdência e dos auxílios federais.

Na outra ponta, o excesso de dinheiro na União cria distorções terríveis. Eu penso nisso quando constato que Itaipu paga 22 mil reais por mês para cada membro do seu Conselho de Administração, que se reúne uma vez por semestre – e nós, nortistas, acabamos de receber um tarifaço na energia. Quanto à corrupção, nem é preciso comentar. Os bilhões desviados tornam incongruentes as denúncias formalizadas contra gestores municipais que merendaram alguns milhares de reais...

Agora se estabelece uma perfunctória discussão sobre reforma política. Escreve-se sobre plebiscito e referendo, como se isto fosse fundamental. Mas sem uma reforma tributária verdadeira qualquer reforma política será um simples remendo em pano velho: mais buracos no tecido.

Buracos como os de bala que se alojaram nas vítimas da noite de terror vivida em Belém. Eu não compreendo porque o que está evidente – Belém está mergulhada na guerra suja do tráfico de drogas – não é dito. Talvez porque não haja solução possível, a curto prazo, para resolver o problema, será? 

A defasagem entre o tráfico (que usa endereços ocultos na rede Tor, na internet, para a venda de drogas, redes sociais e black-blocks para espalhar o pânico), e o aparato policial, retido no tempo em que as rondas motorizadas eram o máximo de eficiência possível, é tão brutal como a nossa pobreza. E essa brutalidade transforma em banalidade o assassinato a sangue frio.

A mentalidade formada na ditadura recomendaria “o controle das redes”. Mas o que resolve é a inteligência no uso delas. Usar a inteligência demanda mais do que coletes à prova de balas e pistolas: envolve acesso a tecnologias e, sobretudo, mudança de métodos e práticas, a qual não acontece milagrosamente nem por acaso. É fruto de um esforço complexo em que a renda média da população tem papel importante: é preciso ter esperança no futuro para dar valor à vida, arriscá-la menos. Sair da máxima pobreza com um só salto, mesmo que se corra o risco de levar um tiro mortal nesse salto, é tentação forte demais para quem não tem perspectivas, mas tem coragem.

Devolver a renda dos estados e municípios, usurpada na ditadura, é também devolver essa esperança e permitir a inteligência.


domingo, 2 de novembro de 2014

Me esqueça!


Circula no Judiciário uma boa quantidade de processos movidos por pessoas que querem tirar dos sites de busca informações sobre si. Geralmente deslizes, devida ou indevidamente gravados; ataques pessoais; críticas e até calúnias. Alguns têm obtido medidas favoráveis. Mas elas são puro paliativo.

Porque as pessoas não esquecem. Esquecer é morrer: a humanidade é o que é porque tem memória, aprende e transmite, mantém um processo contínuo de acumulação de experiência que lhe permite a sobrevivência e a vida cada vez mais longa.

Na Roma dos imperadores havia uma disposição chamada damnatio memoriae, a condenação da lembrança, aplicada a todos os que eram considerados supercriminosos. Depois de sua morte, geralmente por execução, apagava-se tudo o que se referia a eles: raspavam-se moedas, quebravam-se estátuas, repintavam-se os quadros, riscava-se o nome dos documentos, fossem estes de papiro, de pedra ou de bronze. Mas controlar a memória é impossível: a imperatriz Messalina, sobre quem foi aplicada a condenação, é ainda, dois mil anos após sua morte em 47, o símbolo da sexualidade descontrolada. Três bustos feitos em pedaços e recompostos por diligentes arqueólogos restauram seu rosto, com razoável grau de certeza. O esquecimento póstumo talvez fosse até benéfico para ela e imagino que, se essa adolescente mãe de dois filhos tivesse vivido mais duas décadas, tentaria apagar o seu passado. Se vivesse hoje, tentaria tirar da internet no mínimo a encenação de casamento que foi a causa próxima de sua morte.

Trago este assunto hoje porque volta à discussão e às pautas de noticiário mais uma tentativa de controle dos conteúdos da internet, uma nova roupagem para a antiquíssima luta entre a liberdade de expressão e a censura, ou, como querem os mais moderados, entre o dizer e seus limites. Não adianta. A China fez isso e gradativamente está perdendo a batalha.

O boato, que circulava ao pé do ouvido, hoje trafega em alta velocidade pelo whatsapp. Continua sendo um boato, com as consequências de qualquer boato, que podem ser resumidas em dois ditados: “onde tem fumaça tem fogo” e “em tempo de guerra boato é fato”. Claro que a fumaça pode ser de gelo seco, não de fogo; e que a maioria dos boatos não se torna fato, sequer cria fatos novos. Mas em tempo de guerra, com a censura atuando a pleno, boato é fato, mesmo: quando ninguém sabe com certeza do que está acontecendo, é melhor se prevenir...

Há pessoas que, despreocupadas como o foi Messalina, revelam-se completamente para os usuários dos canais de comunicação. Nudez de corpo e nudez de alma. Muitas delas estão na justiça, agora, tentando conseguir para si o esquecimento que os imperadores romanos impunham aos que consideravam de exemplo danoso ao império. Melhor fariam se fossem contidos em seus atos e dizeres. O Estado não é instância adequada para proteger imprudentes: basta um pezinho para ele, e ele ocupa o corpo inteiro, ou seja, um simples precedente é suficiente para instaurar censura. E a censura é o mal maior.

Quanto à calúnia, existem medidas legais contra ela desde que sistemas jurídicos foram instituídos. Mas na raiz da calúnia está a maledicência e esta nada nem ninguém seguram: acredito que os hominídeos já grunhiam condenações entre si e processos do que hoje se chama “desconstrução de imagem”, eufemismo para a maledicência objetivamente aplicada, que desdobra falhas alheias até o ponto do insuportável, induzindo a calúnia, podem ser encontrados na Bíblia, entre outras memórias humanas.


O curioso disso tudo é que a maioria das pessoas é esquecida sumariamente duas gerações após sua morte. Pedir para ser esquecido antes de morrer apenas antecipa o que fatalmente acontecerá – e dos atos e dizeres praticados restará apenas o que a humanidade julgar necessário para seu aprendizado.

domingo, 26 de outubro de 2014

A cara do Brasil


Na salada de comentários sobre a campanha eleitoral que termina, retiro dois ingredientes comuns aos partidários do amarelo ou do vermelho: a catástrofe que acontecerá se o outro lado vencer; e a consideração de que esta foi a campanha mais lamentável, nojenta e baixa de que se tem notícia.

A isto somo a minha experiência. Participando da política há mais de 50 anos, do grêmio estudantil à UNE, do jornalismo ao PSDB, passando pela ditadura, pela constituinte, pela oposição e pela situação, já vi boi voar e gafanhoto dar leite. Há sempre quem preveja uma catástrofe na vitória alheia e quem ache que a campanha foi suja demais. Não é a minha opinião.

Creio que o bem maior é a liberdade democrática e, nela, a alternância no poder é essencial. Há países que mantém por décadas o mesmo partido, ou o mesmo sujeito, na direção; nenhum deles tem boas histórias para contar no final desses longos períodos. Às vezes, como na Alemanha, um espetacular resultado econômico cobra seu preço; às vezes, como em Portugal, os cravos se descobrem sem canteiros suficientes. Uma campanha eleitoral é um complexo fenômeno sociológico com começo, meio e fim. O processo tem tantas variáveis e tantas implicações que não se pode definir, como querem muitos dos que escrevem, o que acontecerá depois. Há consequências, por certo. Mas muito poucas são previsíveis.

Quanto à sujeira, o que vi nesta campanha só diferiu das outras pela extraordinária abertura política proporcionada pela internet. Milhares de pessoas – talvez isto chegue à casa do milhão – deixaram de ser espectadores para interferir diretamente. Para mim, isto é uma novidade muito boa: prepara terreno para o fim dos donos do povo, aquelas pessoas que rotulam toda e qualquer opinião contrária ao que pensam como antipovo. Ora, o povo é um ente abstrato e, assim, não tem necessidades, nem demandas, nem interesses. Quem tem necessidades, demandas e interesses são as pessoas e estas estão preferindo posicionar-se, usando largamente os recursos do teclado e dos canais virtuais para dizerem exatamente o que pensam, gostem ou não gostem os demais.

A boataria solta é típica e característica das campanhas eleitorais. A novidade desta foi a velocidade de circulação. Desinformar e destratar o adversário são instrumentos usados desde que Davi depôs Saul e tomou o poder em Israel. A natureza humana continua a mesma. Desta vez, entretanto, milhares de pessoas resolveram fazer o mesmo.

Abro uma exceção para o que aconteceu aqui no Pará. Na reta final da campanha tive a sensação de voltar às eleições dos anos 1950, nos duelos entre “A Folha do Norte” e “O Liberal”, este então órgão oficial do PSD e o outro ligado à UDN. Como agora, o jornalismo passava longe das páginas, transformadas em coletâneas de ofensas e desinformação. Os nossos dois principais jornais vão pagar caro, em descrédito, pela desconfiança que incutiram nos leitores. A palavra na telinha do telefone ou do computador desaparece fácil; a palavra impressa permanece.

Outro lamento faço para a Justiça Eleitoral, que está jogando fora uma longa tradição: a de viabilizar com a máxima imparcialidade o pleito. Espero que a postura censora que os juízes tomaram, a partir de decisões e discussões no TSE (particularmente uma sessão em que os ministros deitaram falação sobre como devem ser os programas eleitorais) seja apenas um surto passageiro. As principais funções da Justiça Eleitoral são evitar fraudes, homologar e fazer cumprir as pactuações entre as correntes políticas para que se faça a eleição. Ela já se mete demais em regulações (muitas, prejudiciais aos partidos pequenos) e, a continuar desse jeito, vai acabar inviabilizando a multiplicidade essencial para equilibrar o radicalismo, caminho natural do confronto entre os grandes partidos.


Mas, no geral, essa campanha fugiu à regra porque foi emocionante: não houve nenhum ungido de Deus, nenhum salvador da Pátria, nenhum polarizador inconteste. Homens e mulheres discutiram o que quiseram e como puderam, fizeram proselitismo, escolheram as virtudes e defeitos de candidatos sem mística alguma. O Brasil mostrou a sua cara, essa é que é a verdade. E, se houve muita lama atirada nessa cara, houve também um enorme esforço cívico, livre, leve e solto, para decidir o caminho do futuro.




domingo, 19 de outubro de 2014

De parafuso em parafuso


Não pude escrever nas duas últimas semanas. Tive que enfrentar um maremoto de problemas.

Retorno agora, saindo das voltas do parafuso pessoal para constatar que as campanhas eleitorais para o segundo turno também estão em parafuso.

Assisto entrevistas surreais: perguntas sem respostas e afirmações sem perguntas. Retórica sem conteúdo. Puro palavrório.

Bate-boca sem debate. Fuxico. Um parafuso no rumo do lodaçal formado por pedaços de inquéritos, confissões duvidosas, confusões deliberadas. Rejeição contra rejeição: Kafka, o transgressor, gostaria disto. Ou talvez constatasse que tudo o que imaginou e escreveu é pouco diante da fertilidade brasileira, que transforma pau em pedra e esvazia palavras com uma inimitável arte.

Bem, pelo menos há menor quantidade de promessas impossíveis de cumprir, abundantes nas eleições passadas. Mas só porque o tempo de tevê é limitado.

Mesmo assim, os candidatos deveriam aprender com os romeiros de Belém e de Aparecida a arte de barganhar com os santos por meio de promessas. Os romeiros não prometem o que não podem cumprir. Quitam-se de maneira fácil: manhã de caminhada com uma casinha na cabeça, dias de caminhada na romaria a pé pelas estradas, períodos de esforço e sofrimento para agradecer e pedir. Não devem, não temem. Sobretudo, não mentem para os santificados, coisa banal nas campanhas eleitorais.

Este parafuso eleitoral não parece um voo. Parece mais uma broca, como as da Petrobrás. Às vezes, a broca encontra petróleo. Às vezes, gás. E, às vezes, apenas lama e água salgada. Pelo buraco aberto pela broca jorrará o que a terra guardou. O que será que o Brasil guardou? Até agora, o que vem saindo da perfuração, quer na tevê, quer nas redes sociais, assemelha-se a uma catarse coletiva: o Brasil profundo despeja tudo o que estava travado na garganta, dando voltas na cabeça, envenenando o cotidiano.  No fundo do poço talvez haja uma boa surpresa. Ou talvez mais lama.

Tenho esperança de que a experiência eleitoral deste ano seja aproveitada para alguma mudança que melhore o sistema. Uma pequenina esperança, apenas. O conjunto de políticos eleito para o Congresso nacional não ajuda em nada esta esperança. Em sua maioria são pragmáticos senhores que não costumam refletir. Uma representação correta do Brasil de hoje, em que leitores são raros e espiadores, milhões; em que as escolas produzem, para cada pesquisador, milhares de analfabetos funcionais. 

Pode ser que esses pragmáticos senhores consigam identificar boas surpresas quando o parafuso eleitoral acabar. Pode ser que, depois que a broca despejou o lado negro do coração do Brasil, seja a vez da riqueza aflorar.

Se os romeiros acreditam nas graças e milagres, porque eu não acreditaria também?

domingo, 28 de setembro de 2014

Buraco Negro


Talvez não haja retrato maior da ineficácia das leis ou da impunidade brasileiras do que o panorama deste processo eleitoral em que mais de duas centenas de candidatos, tanto para cargos executivos como para cargos legislativos, respondem a processos por corrupção e crimes conexos, muitos já condenados por juiz singular.

Já não é só Maluf quem, com a cara de pau que ostentou durante toda a sua vida, encara desdenhosamente processos e instâncias judiciais para, a cada eleição, postar-se como coringa em São Paulo, puxar milhares de votos para as urnas e, de aliança em aliança, de composição em composição, manter-se no topo do que Lula chamou de zelite, palavra que repito aqui para distinguir esse povo da verdadeira elite brasileira.

O site “Congresso em foco” trabalhou sobre os dados dos registros de candidaturas e encontrou 253 candidaturas indeferidas pelos Tribunais Regionais Eleitorais (no Pará são 20). A maioria desses candidatos continua em campanha, exatamente como Maluf, enquanto espera pelo julgamento no Tribunal Superior Eleitoral. É verdade que eles são apenas 1% dos cerca de 25 mil candidatos registrados. Mas é verdade também que os partidos os registraram porque são puxadores de votos: seus votos engrossarão as legendas e não apenas no cargo para que concorrem, mas para o restante da chapa. Se a candidatura for indeferida e o registro cassado, os votos individuais para esse candidato serão anulados – mas os restantes valem. Beneficia-se o partido e os demais candidatos que compõem a chapa.

O que revolta é saber-se que, exceto o Partido Comunista Brasileiro e o Partido da Causa Operária, que não registraram fichas sujas, todos os demais partidos contam com esses duvidosos puxadores de votos. E que eles puxam votos porque a Justiça Eleitoral é lenta demais, indiferente às consequências de sua morosidade, que incluem afastamento de prefeitos no meio do mandato porque somente dois anos depois é que a impugnação ao registro teve julgamento definitivo. O registro de candidato duvidoso tornou-se um recurso de campanha eleitoral válido – e isto contamina a democracia.

Pode-se dizer que predomina, no caso, o princípio constitucional de que um acusado é inocente até prova em contrário. O problema é que a aplicação desse dispositivo é seletiva, não vale para todas as pessoas: os presídios estão cheios de presos temporários, que cumprem pena antes do julgamento. Mas para a zelite, ele vale. Para o partido que usufrui da fraude, ele vale.

O outro aspecto dessa perversão eleitoral é o fato de serem essas pessoas puxadoras de votos. Milhares de pessoas votam em Maluf a cada eleição, centenas de milhares votarão nos fichas sujas. Eu não acredito na inocência do eleitor contemporâneo, mesmo que ele vote numa seção lá onde Judas perdeu as botas. Ele sabe em quem está votando e vota. Essa massa demonstra claramente que não se importa com a corrupção ou, então, que não confia no Poder Judiciário. Em qualquer das alternativas, aponta para um buraco negro - cuja força gravitacional, como se sabe, absorve tudo o que está em torno - no espaço democrático.

Parece pequeno, esse buraco, considerando-se a relação entre o número de candidatos e o total de fichas sujas. Mas o verdadeiro tamanho dele só se poderá saber no volume de votos que mereceram. E a questão que se coloca é se queremos ou teremos que continuar tolerando essa distorção perversa.


domingo, 21 de setembro de 2014

Vale tudo


No dia 11 de outubro de 2012, o atual presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Lewandowski, votou pela absolvição de Paulo Rocha.

Dois anos depois, neste mês de setembro, ele pede vistas do processo de julgamento da impugnação da candidatura de Paulo Rocha, em que a relatora votou pela manutenção da candidatura. Geralmente um ministro pede vistas de um processo quando discorda do voto. O pedido parece estranho, pois – o ministro terá suas razões para tanto, mas não se pode deixar de pensar no acordo que fez com Renan Calheiros para conseguir um imoral aumento de irreais 34% na própria remuneração e na de seus pares do Judiciário. Uma espada na cabeça de um senador governista é uma poderosa ferramenta de pressão.

Neste mesmo setembro Rayfran das Neves Sales, pistoleiro, assassino da missionária Dorothy Stang, julgado e condenado a 27 anos de prisão por esse crime, ainda cumprindo pena, é acusado de, em quadrilha, matar mais três pessoas em local bem longe da penitenciária e preso. Com as bênçãos do Judiciário, Rayfran, pistoleiro confesso, ficou trancafiado menos de 9 anos. No dia 2 de julho de 2013 um juiz decidiu que ele era bonzinho o bastante para cumprir o resto da sentença na própria casa. Ou seja, solto. Rayfran acrescentou à pistolagem o tráfico de drogas.

Um a um os condenados do mensalão vão saindo da cadeia, inicialmente a pretexto de trabalhar fora, enquanto aguardam a tal prisão domiciliar. Jornada puxada desse trabalho fora do presídio: de 8 às 18 horas, com uma hora de intervalo para o almoço. Se alguém acredita que José Dirceu vá fazer “pesquisa processual e de jurisprudência” num escritório de advocacia, 9 horas por dia, merece integrar o coro dos serafins que cantam no céu. Os ministros do Supremo Tribunal Federal, Lewandowski à frente, alinharam argumentos em juridiquês para não ficar tão mal assim com essas concessões – até porque os réus do mensalão ainda não cumpriram um mínimo razoável da pena. Eles disseram que a lei que exige esse mínimo razoável está fora da realidade carcerária do Brasil.

Mas eles não conseguem ver que é esse pedido de aumento salarial de 34% que está fora da realidade brasileira.

Pelo jeito, a época é de vale tudo (que agora tem uma sofisticada sigla – MMA – para disfarçar sua velhice secular: os espetáculos de violência existem desde a antiguidade conhecida, com mais ou menos sangue, e mais ou menos espectadores, conforme a época e a propaganda feita). Vale tudo no Judiciário.

Vale tudo na campanha eleitoral: uma voz ao telefone atribuída a “a”, “b” ou “c”. Uma invasão patrocinada. “Pesquisas” distorcidas. Desconstrução de imagem mesmo que seja pela via da calúnia. Incoerência. Engavetamento de processo. Jornais partidarizados, atirando lama para todos os lados.

E, como vale tudo tanto no Judiciário como na campanha eleitoral, eu poria as barbas de molho, se as tivesse, diante da urna eletrônica, seus disquetes e a falta de acesso aos resultados por seção eleitoral. Um boi de 34 arrobas pode passar voando entre o dedo do eleitor e o computador central do Tribunal Superior Eleitoral...







domingo, 14 de setembro de 2014

A alma brasileira


Eu quero falar sobre o Brasil bom, para minorar o desgosto deste Brasil da corrupção, do desmando e das palavras vazias de uma campanha eleitoral cheia de baixarias e misérias. Porque é este Brasil bom que nos aponta o caminho, que nos informa que não vivemos apenas de vergonhas.

Sim, eu tenho vergonha desse lamaçal que estendem diante de nós, tentando nos arrastar para dentro dele, nos convencer que é assim mesmo a nossa vida.

Olhem e ouçam esta maravilhosa e espontânea ação de um grupo de brasileiros nas praias de Angra, no Rio de Janeiro, ao se depararem com o sofrimento de cerca de 30 golfinhos encalhados:



Olhem e ouçam, na metade final do vídeo, esta maravilhosamente rápida ação de um grupo de brasileiros em Curitiba, apagando com extintores de carros o incêndio num avião que acabara de cair, socorrendo as vítimas e impedindo um mal maior:



Finalmente, olhem e ouçam esta maravilha de síntese de duas clássicas canções de despedida, compostas em regiões completamente diferentes e transformadas numa pátria musical única pela genialidade de Yamandu Costa e Dominguinhos.




Este Brasil é real e verdadeiro. Não tem retoques nem maquiagem, nem palavras de caso pensado, nem silêncios cúmplices. Não tem dedo de marqueteiro. Não se importa com as diferenças – antes, valoriza. Não se importa se a religião manda salvar ou não os animais – faz o que manda sua compaixão. Não pergunta quem está ou de quem é o avião, não espera a autoridade chegar – vai, e salva.

Hoje, quando o fundamentalismo, religioso ou político, ameaça dividir o país em bandos, é bom lembrar que existe uma alma brasileira que se expressa nos atos das pessoas, não nos discursos. E que ela é digna e bela.


domingo, 7 de setembro de 2014

As distorções das mídias


Entre o eleitor e o candidato existe uma tela onipresente. E, se o meio é também uma mensagem, é preciso saber qual a mensagem dessa tela.

Ela é plural: grande, no cinema; média, na televisão; pequena, nos computadores e assemelhados; micro, nos comunicadores portáteis.

Ela não conduz à realidade, mas ao reality-show: isso que ela mostra, não nos atinge. Geralmente, nos distrai por um momento – e vamos para o próximo. É um meio superficial, gôndola de supermercado, sai um produto, entra outro. Aqui e ali se recolhe uma informação útil. E, como o nosso cérebro não é infinito, memorizamos essa informação e apagamos o resto.

No cinema, a tela é unidirecional. Ela passa um recado, mas só aquele, e vai direto para a impressão emocional. Filmes com temas políticos são sempre de propaganda (como “A rainha” e “O discurso do rei”, feitos para compensar o efeito Lady Di sobre a família real inglesa) e apelam diretamente para o subliminar. Graças a Deus, são difíceis de fazer e quase sempre chatos de ver.

Na televisão, a tela onipresente é também fracionária: ela se divide em segundos. Assim, há que falar em segundos. Se o tema é complexo, terá que ser simplificado. O resultado é uma vala comum de chavões, porque não há como explicar em segundos nenhuma política pública. A distorção do meio é cruel, reduz a insulto o que deveria ser crítica. Enéas se apresentou ao país em 30 segundos com um bordão de teatro que lhe rendeu votos mas nenhuma densidade política. É politicamente inexpressivo.

Nos computadores e nas telas dos portáteis ligados à internet, onde a leitura é obrigatória, há mais espaço para conteúdos e também menos pressa: você sempre pode guardar para ler depois. Mas aqui é o brilho da tela que cria outro tipo de distorção. Um quadro de Van Gogh na tela do computador emociona muito mais do que o quadro real: este não tem brilho nem transparência. A mistura desordenada com os anúncios (que saltam em cima do que você está lendo) nivela por baixo qualquer assunto, o transforma num produto a ser consumido. Além disso, o texto deve ser também sintético: ler com luz na cara cansa. O leitor desiste logo.

Finalmente, a telinha do portátil que recebe e transmite mensagens e clipes. Aí só dá para algumas palavras, para a discussão curta e grosseira. Ou seja, xingamentos, que também são parte de toda campanha eleitoral que se preze. Mas que só permitem um juízo de valor: avaliar a capacidade do candidato na pronta resposta e o grau de civilidade que tem.

O meio que transmite a mensagem cria distorções enormes, pois: o eleitor tem somente uma imagem do candidato; não tem a possibilidade de contribuir com seu esforço para a vitória de A ou B; não consegue saber a diferença entre uns e outros, exceto quando a proposta é radical. O resultado é o que estamos vendo: uma campanha vazia, produto direto da sua concentração nas mídias audiovisuais.

As mídias audiovisurais deveriam ser apenas uma parte da campanha; mas, com as restrições draconianas impostas por um falso moralismo – afinal de contas, ninguém vota contra seus próprios interesses imediatos e posso contar muitos causos que comprovam isso – o debate político virou, mesmo, um show ensaiado. Conseguiram acabar com a festa das ruas. O candidato emergente – aquele que fazia uma coleta entre amigos para pagar meia dúzia de camisas ou imprimir seus santinhos, financiar o som da festa do santo, contratar a van para levar seus eleitores à urna – dançou. Tem que barganhar com os caciques um tempinho para se apresentar na tevê – e esperar que seu carisma, se o tiver, faça o resto.


Que pena!

domingo, 31 de agosto de 2014

Salto no quase escuro


Na História do Brasil há vários momentos como esse que estamos vendo nascer agora: uma liderança se projeta e encarna a utopia; a utopia de cada um de repente toma corpo e palanque. Aí a urna vira cartola de mágico: é como se todas as mazelas ficassem curadas de uma só vez.

Aprendizes de mágico sabem como fazer um coelho sair da cartola e a população sabe, perfeitamente bem, que não passa de um truque. No entanto deixa-se envolver pela magia do momento e, a cada vez, se maravilha. Mas os mágicos não farão o número se não dispuserem de um coelho real, de carne e osso, bem treinado e escondido no fundo falso da cartola.

Com as urnas não há coelho escondido: elas se esgotam com o último registro. Mas a magia da utopia enleva e crer é melhor que descrer. Até o dia seguinte, sob as luzes da realidade que permitirão distinguir-se o falso do verdadeiro.

Esses momentos cívicos são bonitos. A população fecha os olhos e salta no escuro, confiante nas luzes do arco-íris no fundo da cachoeira. Pena que sejam apenas reflexos prismáticos: o pote de ouro não estará lá. 

Mas haverá, talvez, diamantes no fundo do rio? Ou apenas pedras? No complexo social, não há drones para saber o que se passa. Há que conferir pessoalmente.

A pré-eleição não é animadora. Esgotada a geração das diretas, o conjunto que a substitui está a quilômetros abaixo dela, em qualidade e coragem. Não há estadistas, há negociantes. Renan Calheiros e Ricardo Levandovisky acabam de montar uma armadilha para o próximo presidente, seja qual for: 34% de reajuste para o Judiciário, o início de uma corredeira que pode atirar o país num poço bem longe da cachoeira e de seu arco-íris. Para deter essa corredeira, há que pagar o preço de uma crise institucional. O primeiro passo do novo presidente será uma barganha com os dois outros Poderes.

A plataforma dos três candidatos com maior intenção de votos é conservadora, banqueira e populista. Está longe, muito longe, de responder à voz rouca das ruas do Sudeste/Sul, e sequer ouve as tímidas vozes do Norte. A montanha russa da política brasileira pode fazer um looping nesta eleição – mas, a menos que o carrinho saia dos trilhos e se despedace, vai continuar o percurso descendente desta fase.

Ou seja: o salto não é tão no escuro assim. Com sorte, dá para alcançar uma laje segura que sirva de degrau.


PS: De repente apareceu nesse texto um monte de palavras assinaladas, não sei porque nem por quem. Por favor, desconsiderem. Eu não autorizei anúncios e nem esses cacos.

sábado, 23 de agosto de 2014

Faroeste, de novo


Este mapa mostra a BR-163, a Santarém-Cuiabá. Os quadros maiores, circundados de branco, são ampliações dos quadrados vermelhos. O mapa, processado e divulgado pelo Greenpeace, é do monitoramento de queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Especiais – o INPE e é deste agosto.


O incêndio que percorre a estrada, com pavimentação em fase de conclusão, assinala o furor da chegada de uma frente econômica – uma assim chamada frente de penetração nacional, que na verdade é apenas mais uma bandeira. Bandeira, de bandeirante, aquele antigo sistema colonial de “conquista do sertão”. É o início, agora no sudoeste paraense, do que aconteceu no sudeste: um faroeste, com direito a bangue-bangue, conflitos com índios, corrida de ouro e guerra por terras.

Há mais de uma década foi realizado um alentado relatório de impacto dessa estrada. Ela tem como característica principal estar num corredor ladeado por terras indígenas e reservas ambientais – tudo sob tutela do governo federal, naturalmente. E, como ela é uma estrada federal, também o meio desse corredor agora está sob controle da União. E, no entanto, das recomendações do alentado relatório não foi feito nada para impedir o que começa a acontecer com os incêndios que, segundo a monitoria, aumentaram em quase 300%.

Mal se respira em Novo Progresso, informa o jornal local. Na rede de estradinhas que se tece a partir do eixo da BR repete-se o ciclo: desmate, queima, pastagem e, agora, plantio em escala. O agronegócio avança, completamente descontrolado porque o poder regulador, o governo federal, não fez nada, nem para demarcar a caminhada, nem para coibir os excessos, nem para proteger o que está sob sua guarda: os tutelados diretos, os indígenas e a natureza, e as pessoas que integram essa bandeira ou que lá já residiam.

Teremos um novo faroeste, um novo episódio do tratamento que o Pará recebe da União: o de colônia a ser explorada, que, mais uma vez, vai pagar o preço de ser uma reserva rica a ser saqueada. 

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A figura do pai


Poucas oportunidades existem iguais à que o Dia dos Pais nos oferece para conhecer um pouco mais o estereótipo masculino em nossa sociedade. E é muito simples descobrir: basta percorrer as ofertas publicitárias para o presente do papai. Elas são um termômetro, principalmente aquelas repetitivas. O mesmo produto oferecido por várias empresas e várias peças de publicidade traduz a tentativa de vender mais dentro de uma demanda consolidada: trata-se, pois, de um produto que as pessoas procuram, querem comprar. E se querem comprar como presente é porque acham que será adequado, que o papai da vez quer ou vai gostar. O que acaba caracterizando um dado de estereótipo, isto é, de como a sociedade vê o homem neste início do século.

Graças a Deus a publicidade arquivou (e se arquivou, é porque ninguém quer) as gravatas e as meias. Elas ainda estão presentes, mas na cabeça das professorinhas que ensinam crianças: como faziam meus filhos há trinta anos, meu neto deu ao pai uma gravata e uma meia de papel, feitas no colégio, com mensagens carinhosas. Parece que, nas escolas, a tradição vence fácil a imaginação ou a criatividade.

Na publicidade, alguns artigos são recorrentes o tempo todo. Nesta fase, são os eletrônicos: celulares e que tais, computadores, televisores, aparelhos de som. Para o dia do papai a oferta não mudou muito: o mesmo anúncio de descontos que serviu para a copa do mundo também serviu para o dia dos pais. De qualquer forma, é um dado de estereótipo: todo mundo precisa estar conectado, mesmo que não tenha banheiro em casa (diz a ONU que há quase um celular por habitante no planeta, embora metade dele não tenha instalações sanitárias).

 Este pai conectado, no Brasil, precisa ter barba e cabelos bem feitos: todos os magazines e grandes redes ofereceram, nos itens principais de seus anúncios,  barbeadores, aparadores de pelo e cortadores de cabelo; alguns acrescentaram xampus.

 Espera-se que veja e ouça, mas não que leia: nem as livrarias ofereceram livros para o dia do papai. Elas ofereceram filmes e coletâneas de discos e shows.

Ele deve se vestir bem, mas esportivamente: a eterna camisa dos presentes masculinos este ano foi de malha e mais descolada. Não vi nenhuma oferta de terno ou de sapato social. Quanto aos tênis, há mais cor e alegria.

É um sujeito que cuida do corpo. Uma infinidade de artigos para exercício bombou nos anúncios. De estações de musculação completas até garrafinhas de plástico para água, passando por relógios especiais e monitores cardíacos.

Paradoxalmente, este pai deve gostar de um gole. Uma grande quantidade de artigos para vinho e cerveja foi oferecida: conjuntos para abrir e fechar garrafas, canecas, recipientes térmicos, decantadores e adegas eletrônicas.

Ele também deve saber fazer um churrasco. As ofertas de conjuntos para churrasco, aventais, churrasqueiras e outros produtos tomam parte importante das peças publicitárias.

Deve saber usar ferramentas: furadeiras, lavadoras de pressão, maletas de ferramentas, são ofertas antigas, mas que continuam em alta.

Mas, felizmente, o pai compartilha mais as tarefas domésticas. Digo isto porque, pela primeira vez – embora de forma complementar, no rodapé dos anúncios – apareceram geladeiras ao lado da cadeira-do-papai, que por muito tempo foi o único item doméstico apresentado, e ainda continua firme. . Ah, e panelas elétricas. Afinal, cozinhar ainda não é com eles...


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O templo de Salomão


O nome foi bem escolhido. Salomão, o sábio, foi também um rei voraz. Diz a Bíblia que ele tinha 700 mulheres e 300 concubinas, de diversos povos. Diz ainda que, para abastecer sua casa, recebia diariamente de seus oficiais-governadores, encarregados de cobrar a parte do rei, 10 mil litros de flor de farinha e 20 mil litros de farinha (30 e 60 coros, respectivamente) além de “10 bois cevados, 20 bois de pasto e 100 carneiros”, afora caça e aves de criação. Ou seja, algumas toneladas de trigo e, em um ano, um imenso rebanho.

Reduziu à servidão “o que restou dos amorreus, heteus, perizeus, heveus e jebuseus”, derrotados em guerras de conquista. Construiu o grande templo mas, também, altares para deuses diversos, das religiões que algumas de suas mulheres confessavam.

Revendo essas informações antigas e os estudos que se fizeram sobre elas, e contemplando as fotos do recém-erigido templo de Salomão, não posso deixar de pensar que os milhares de anos que distam entre essas informações ainda são poucos para que a essência do fazer humano seja mudado. Lá, como cá, em nome de Deus se recolhem donativos, geralmente moralmente obrigatórios. Lá, como cá, em nome de Deus se fazem grandes edifícios: se no templo de Salomão cabem dez mil pessoas, na grande mesquita de Dubai, inaugurada em 2007, cabem 40 mil. Note-se que a cidade de São Paulo tem cinco vezes mais a população de Dubai - e uma proporção bem menor de favelas e miseráveis.

Salomão ocupou o trono de Israel depois de forçar a preterição do irmão mais velho (que depois mandou matar), casou-se com a filha do faraó do Egito e era fruto de um adultério sangrento. No entanto, lá, como cá, tudo se perdoa ao homem bem sucedido: o livro dos provérbios integra a Bíblia, novamente em nome de Deus, e o templo de Salomão é apresentado, tanto antes como agora, como produto da fé de um povo.

A enorme coleção de grandiosos monumentos religiosos que a humanidade abriga, reunindo templos, pagodes, esculturas e afins, não parou de crescer. Lamentavelmente, e em que pese a beleza da maioria deles – algumas joias de Ouro Preto, por exemplo -  eu não consigo olhar para essas realizações sem lembrar de escravos, de servos (como os sobreviventes dos povos que Salomão dizimou) ou de trabalhadores miseráveis (como os de Dubai ou os imigrantes ilegais de São Paulo) dando cotas de trabalho gratuito, todos assentando mármores.  Talvez eu esteja nadando contra a corrente: mas eu não acredito que a glória de Deus precise disso, ou que isso seja necessário para glorificar Deus. Mais me parece uma forma de disfarçar o mau cumprimento dos preceitos religiosos – tal como fez Salomão em sua dubiedade. O problema é que religião mal cumprida conduz ao fanatismo, quando a letra substitui a essência. E o fanatismo leva à intolerância e, muitas vezes, à guerra, como acontece há milhares de anos: entre budistas e zoroastristas, entre cristãos e muçulmanos, e, na Palestina, hoje como nos tempos de Salomão, entre israelitas e outros povos. Sem falar nas limpezas internas periódicas levadas a efeito pelos fanáticos de todos os credos...


Uma vez li um conto de ficção científica em que o mundo era dividido em três grandes zonas: uma de ateus, outra de cristãos, outra de muçulmanos, envolvidas numa corrida espacial de colonização de planetas. Na época, achei forçada essa divisão. Hoje, com a expansão religiosa que se exprime, também, em templos e monumentos, penso que talvez seja o rumo que a humanidade está tomando: como a milhares de anos atrás, o nome de Deus continua mágico para justificar o injustificável.

domingo, 27 de julho de 2014

O templo e o cabaré


Cena 1
(Interior de um templo. Multidão e um pastor)

Pastor: Não podemos admitir que esse antro de perdição fique maior!
Multidão: Não podemos!
Pastor: Essa enviada de Satanás destrói nossos lares e atira os homens no caminho do inferno! Todos vocês, fiéis seguidores do Senhor, lancem o nome do Cabaré na fogueira santa!
(uma chuva de pequenos pedaços de papel é atirada para o centro do templo pela multidão. Uma mulher corre rapidamente para um homem que vai atirar uma cédula de dinheiro, fala no ouvido dele, pega o dinheiro e mete discretamente no bolso do pastor, que continua falando. A multidão acompanha a prece.)
Pastor: Rezem comigo! Senhor, não permita que o Cabaré aumente de tamanho! Senhor, não permita que o Cabaré aumente de tamanho! Senhor, não permita que o Cabaré aumente de tamanho! Senhor...
(um grande ruído de trovão silencia a assembleia e ouve-se um grito de mulher)
Mulher: O Cabaré está pegando fogo! Um raio incendiou o cabaré!
(o Pastor e a multidão dão graças, abraçam-se, louvam, enquanto a mulher corre de um lado para o outro recolhendo dinheiro. Cai o pano lentamente).

Cena 2
(sala do tribunal. Juiz e escrivão. O Pastor está à direita do juiz. À esquerda uma mulher maquiada e vestida como exige a profissão de dona de um cabaré. Há ainda um escrivão, um advogado para cada parte e, ao fundo, um oficial de justiça e um policial).

Pastor: Senhor juiz, eu insisto: nossas orações não provocam raios. Só Deus, que castiga o pecado, como castigou, pode fazer isso!
Mulher (interrompendo): Se o senhor não tivesse pedido, Deus não haveria de fazer!
Juiz: Senhora, ele fala, a senhora se cala. Depois a senhora fala, ele se cala.
Mulher: Mas... (leva um cutucão do advogado na perna) Que é isso, agora? O senhor agora me chuta?
Pastor: Como posso chutar a senhora se estou do outro lado da mesa?
Juiz: Chega! Agora falo eu! (para o pastor) O senhor diz que suas orações não valem nada?
Pastor: Não é bem assim...
Juiz (irritado): Responda sim ou não! O senhor diz que suas orações não valem nada?
Pastor: Mas... (o advogado cochicha no ouvido dele)
Juiz: Sim ou não?
Pastor (murmurando): Sim.
Juiz (para a mulher): A senhora diz que as orações dele provocaram o raio que incendiou seu estabelecimento?
Mulher (com vivacidade): Sim!
Juiz (para o pastor): É verdade que depois que o cabaré pegou fogo o senhor recebeu tantas doações que está pretendendo aumentar o templo?
Pastor: Não sei o que tem a ver... (olha para o advogado que está de cara feia) Sim, senhor juiz.
Juiz (para a mulher): A senhora é religiosa?
(todos escondem um risinho. A mulher corre os olhos em volta, primeiro surpresa, depois rindo abertamente).
Mulher: Não, senhor juiz, eu...
Juiz (interrompendo): Não preciso de suas explicações. Senhor oficial de justiça!
Oficial de justiça (adiantando-se): Pronto, senhor!
Juiz: Prenda os dois, autora e réu, por mentirem em juízo! Pois onde já se viu uma profissional do sexo que não é religiosa acreditar na força das orações e um pastor, profissional da religião, descrer delas! Dois dias de cadeia, à disposição deste juízo, para aprenderem que, se brincam com Deus, com a Justiça não podem brincar!
(Os advogados começam a argumentar, o pastor e a mulher protestam e o pano cai).
Fim.

(No ano passado, em Aquiraz, no Ceará, a justiça foi requisitada para dirimir o fato: um pastor fez uma campanha de orações contra um prostíbulo que se expandia, e este foi destruído por um raio. A dona do prostíbulo processou a igreja para indenizá-la. Eu não sei em que deu o processo estranho. Mas é um episódio na medida para a pena de Ariano Suassuna. E, como ele morreu na semana passada, presto desta forma a minha homenagem a esse autor extraordinário: sigo seu exemplo em contribuir para o teatro brasileiro com este mini-esquete de duas cenas, totalmente imaginado e que, com certeza, ele escreveria muito melhor).

domingo, 20 de julho de 2014

Nós, os vira-latas


Eu não tenho complexo de vira-lata. Eu sou um vira-lata. Indivíduo mestiço, sem qualidades especiais e sem dotes refinados. Um entre milhares, centenas de milhares, milhões. Tenho um nome pelo qual me chamam e ao qual atendo. Meu lugar no mundo é circunscrito e sonho frequentemente com não me preocupar com o que vou comer amanhã, depois que resolvi o alimento de hoje. Às vezes consigo sair, por pouco tempo, dos limites geográficos onde estou radicado: uma escapada de uns poucos dias, porque não dá para ir mais adiante.

Nós, os vira-latas, somos conhecidos pela enorme capacidade de sobrevivência: nós nos contentamos com pouco, migalhas de mesas opulentas, uma sobra de carne num osso, uma água mais ou menos limpa, e, num dia qualquer de muita sorte, aquela ração reforçada. E resistimos, meio doentes, meio sarnentos às vezes, mas vivemos.

Também somos conhecidos pelo barulho. Mas, veja você: sem grandes presas ou força bruta de ataque; sem beleza ou exotismo que nos ponham num pet shop ou num colinho confortável; sem porte que impressione, o que nos resta é o alarme. Latimos de alegria, às vezes, mas, quase sempre, é para avisar que alguma coisa está errada, que alguma coisa nos assusta, nos fere, nos adverte do ruim. Latimos para nos defender, para alertar os demais, para que nos vejam. Porque individualmente somos insignificantes, perdidos na multidão: se não latirmos, não ganharemos afagos, ou os elefantes não nos verão e podemos ser esmagados.

Mesmo assim, latimos menos que alguns cães de pedigree: os terriers, ou os pequineses, por exemplo. Esses latem por nada, para ouvir a própria voz, creio eu. São nervosos, correm para lá e para cá sem motivo. E latem até para as formigas.

Somos capazes de ações heroicas, de fidelidades até insensatas, de seduzir com o olhar, de inspirar amor e ódio e também de engodos, covardias e traições. Também somos capazes de ultrapassar o sofrimento com rapidez e de nos ajustar ao terror que possam nos causar. Diante do mais forte, geralmente nos encolhemos e esperamos. Aprendemos da forma mais dura que atirar-se à luta em desvantagem só se justifica quando a ameaça é mortal. Vejam o que está acontecendo com os pitbulls, rottweiler e os dobermanns, que atacam qualquer coisa de qualquer jeito: querem até exterminá-los!

Essa paciência em esperar o momento certo é uma de nossas características mais importantes. Com ela, nós vigiamos os descuidos e conseguimos nacos melhores. Com ela, escapamos de armadilhas. Com ela, conseguimos até ficar silenciosos por algum tempo. E é por ela, também, que latimos e latimos e latimos quando sentimos que as coisas estão mal para o nosso lado. Precisamos latir para ter paciência.

Porque, quando as migalhas desaparecem e a necessidade aperta, nós, os vira-latas, exercemos uma outra das nossa capacidade, herdada dos tempos de selva: nós nos agrupamos e nossas matilhas conseguem instilar o medo que nós, individualmente, não conseguimos provocar. Não é uma coisa que gostemos de fazer. Preferimos o caminho pessoal e livre, competindo entre nós pelo pão de cada dia, mas fazendo o que nos dá na telha. Nossa longa história de sobrevivências nos ensinou que as matilhas costumam agir numa espécie de embriaguez desesperada, e isso não é bom. Costuma ser mortal para muitos. A matilha é nosso recurso extremo, mas ela está lá, guardada em nossa memória ancestral. Sabemos formá-la e a consciência dessa sabedoria nos deixa mais prudentes ainda. Porque pesamos as consequências dela.

Muitos torcem o nariz para nós, porque nos consideram insignificantes e porque pensam eles que nossos latidos são insensatos e não têm razão de ser. Mas isso, que deveria nos diminuir perante nossos próprios olhos, acaba sendo para nós outro recurso de sobrevivência: por ignorar nossos latidos, nossa viralatice, a caravana passa – e segue para o precipício. Ou para a boca da matilha.


domingo, 13 de julho de 2014

Os legados da copa


As teorias conspiratórias: Leonardo Sakamoto criou a melhor de todas no seu blog, tipo o livro de Dan Brown, o "Código da Vinci". Se ele desenvolvesse o tema, quem sabe, conseguiria outro best seller. Mas há pelo menos meia dúzia de outras, tentando explicar como é que o Brasil só não amarelou porque já é amarelo, mas virou mamão passado do ponto.

A discussão política: vai atravessar a campanha eleitoral e, como sempre, pouca coisa restará dela. Há ideias e ideais, mas há, sobretudo, uma enorme incapacidade de trabalho a médio prazo. Torcedor, jogador e cartola querem resultados rápidos e imediatos. Então, tudo fica pelo meio do caminho. E esporte não é exatamente uma prioridade política, a não ser para ocupar garotos de periferia...

Os elefantes brancos: temos agora um rebanho deles. No conto infantil, o grande elefante branco é derrotado por um leão vegetariano. Creio que teremos que importar indianos: só eles conseguem fazer os elefantes trabalharem e pagarem seu sustento. Bem, dentro de dois anos teremos o torneio de futebol olímpico e eles funcionarão de novo. Mas, oh, tristeza! Eles com certeza precisarão de reformas e ajustes...

A desmistificação da Fifa: de repente o Brasil descobriu que, apesar da grama dos campos de futebol ser baixinha, não é pouco o que tem de coelho escondido e saindo desse matinho para as cartolas cada vez mais altas dos dirigentes. Essa desmistificação é ótima: a Fifa caminha para não ser a última palavra em futebol. Podemos falar grosso com ela, agora.

Um gosto amargo para o futebol: e não é por causa da Alemanha. Apesar da goleada, não conseguimos ficar com raiva deles. O gosto amargo foi trazido pela farra da Fifa no Brasil, o que inclui a ladroeira nos ingressos. Descobrimos, de repente, que o esporte que é a nossa alegria é apenas um grande negócio escuso para quem dirige. Que o torcedor é tratado como otário a ser depenado. Principalmente se está do lado de baixo do Equador...

Uma porção de obras inacabadas: talvez elas terminem antes das Olimpíadas no Rio de Janeiro. Nos outros locais provavelmente vão entrar novamente no ritmo usual, isso se não caírem, como o viaduto mineiro. Do que foi feito, ficam os aeroportos e algumas obras de mobilidade. Não sei ao certo quais: desde maio que a página de obras do Portal da Copa não é atualizada.

Uma nova imagem internacional: a imagem do país Brasil melhorou um pouquinho nos quesitos realização e democracia. E a do povo brasileiro ganhou muitos pontos positivos. Talvez que afinal vá sobrar coisa boa dessa história toda, se o fluxo turístico de fato aumentar.

A confraternização com os povos americanos: possivelmente a melhor coisa que a copa nos proporcionou. Os torcedores dos nove países com seleções na copa vieram – a maioria, creio, pela primeira vez – ver de perto o monstruoso Brasil, considerado pelos sulamericanos como imperialista e pelos norteamericanos como terra do fim do mundo. E começaram a demolir o preconceito, da mesma forma como nós, brasileiros, começamos a vê-los com outros olhos.

O nosso lugar: estamos entre as quatro melhores seleções do mundo, mas, diferentemente da Colômbia ou dos Estados Unidos, numa curva descendente. Se aproveitarmos o legado, poderemos reverter a curva; se não, será o declínio.

E, finalmente, a conta: em janeiro de 2013, o site “Os amigos do presidente Lula” informava que as despesas com a Copa seriam 22,46 bilhões de reais, que seriam largamente compensados pela entrada, na economia, de 142 bilhões entre 2010 e 2014.  Bem, esse estudo foi igual ao que baseou a decisão de comprar a refinaria de Pasadena: os 142 bilhões não entraram – os mais de dois bilhões de recursos que seriam trazidos pelos turistas previstos não vieram, apesar da invasão argentina - e a despesa subiu para 27 bilhões de reais, segundo o Tribunal de Contas da União. Bem, o Coríntians terá que pagar o custo dos investimentos no Itaquerão, dizem. E eu digo: é mesmo? Pago pra ver... Só o tempo dirá se valeu a pena.


domingo, 6 de julho de 2014

Joaquim e a Copa


Foi o julgamento de dois juízes corruptos, que haviam injustamente condenado Susana, que marcou o início da atividade profética de Daniel – assim conta a Bíblia, numa história que estabelece a diferença entre o bom e o mau juiz, a importância da busca pela verdade dos fatos e a necessidade de questionar os poderosos.

Bons juízes fazem muita diferença. E é por isso que Joaquim Barbosa fará falta. O homem que sai de alma leve das mais altas esferas do poder deixou mais leve também a alma deste país. Embora, como explicou uma vez Mao Tse Tung (não sei se por inspiração própria, se apenas reproduzindo um mote de algum sábio chinês), sempre se dá um passo atrás depois de dois passos à frente: na hora do passo atrás tudo parece perdido, mas você de fato avançou um passo. E é assim, passo a passo, que se mudam sociedades.

Se Joaquim leu ou não a história de Susana, pouco importa: ele exerceu os princípios estabelecidos pelo profeta Daniel há mais de cinco mil anos. Princípios que o emaranhado de leis brasileiras oculta frequentemente por meio dos dribles recursais. Uma palavra não vale mais que outra, esta é a essência da mensagem da história de Susana. Há que ancorá-las em fatos. Há que entender esses fatos e descobrir a intenção oculta sob a mentira. E agir com uma única preocupação: ser justo, fazer cumprir o pacto social, expresso na lei, no regulamento ou no regimento.

É difícil, creio, fazer isso num campo de futebol. Mas se os juízes – tecnicamente chamados de árbitros, mas sempre juízes – tivessem respeitado essa preocupação e esses princípios não teríamos o show de faltas que atingiu o seu clímax na dramática lesão de Neymar. Fizessem eles cumprir a regra básica do futebol, que é o menor contato físico possível entre os jogadores, e teríamos, com certeza, jogos melhores, mais bonitos, mais criativos, porque bem menos violentos. Graças a esses maus juízes o talento é punido: os grandes atacantes ficam imobilizados pelas faltas. Como James Rodríguez, no mesmo Brasil x Colômbia. De um modo geral, os árbitros desta Copa se preocuparam com coisas que não são de sua alçada: evitar suspensões de craques para os espetáculos finais, evitar magoar as torcidas... Com isso, fizeram prevalecer a força sobre a técnica de jogo. E puniram a habilidade e o talento.

Joaquim Barbosa foi só um bom juiz. Tivéssemos mais desses e não teríamos achado tão surpreendente a sua atuação. Seria normal o exercício inaugurado pelo profeta Daniel: não se fiar, nem se intimidar, com as aparências e com o poder, seja este político ou econômico, mas procurar o justo nos limites do pacto social que é a lei. Na Copa, o que estamos vendo é a tolerância com o desrespeito ao pacto. E podemos medir que a consequência é desastrosa.


Mas, como assinalou Mao, embora Levandowisk assuma a presidência do Supremo, um dos dois passos dados à frente ficará. A alma não fica completamente leve, mas, com certeza, menos pesada.

domingo, 29 de junho de 2014

Sem razão


Um quarto da população mundial começa os jejuns do Ramadã, o Brasil inaugura o tempo da política com as convenções partidárias para a escolha de candidatos e quem quer saber disso? Festeiro como sempre, o Brasil arruma uma porção de meios feriados ou até feriados inteiros para assistir futebol. Quer dizer, assistir, assistir mesmo, só uma parte. A maioria se diverte e uma minoria ganha dinheiro. Inclua-se nessa minoria uns bons milhões de pessoas que aproveitam a festa dos outros para engordar seus orçamentos com horas extras, vendas de comidas e bebidas, gorjetas, corridas de táxis, participação em shows e outros.

Não há razão alguma para tanto, mas, novamente, quem quer saber disso? Blaise Pascal disse que o coração tem razões que a própria razão desconhece, João Gilberto colocou isso em música e o futebol transforma a frase em explicação. Razões? Não, paixões. Química especial na fisiologia humana. A paixão não dá razões, mas sensações.

O balconista da padaria mais próxima olhou a tevê e disse algo como: esses caras ganham milhões, eu é que não vou ficar assistindo. Isso foi antes de começarem os jogos. Depois... bem, depois ele consegue juntar-se à unanimidade contra o Fred.

Suárez fez um enorme sacrifício para chegar à copa. Depois mordeu a própria corda. Despedaçou suas chances. Por quê? Como diz o anúncio, porque sim. Descontrole emocional. Paixão. Esses caras que ganham milhões – ou nem tanto, como é o caso da maioria deles – também perdem a cabeça de vez em quando.

Políticos profissionais conseguem perceber facilmente o alcance da paixão popular, quando o circo é importante e quando não é. Dilma aproveita a paixão para consolidar metade do horário eleitoral gratuito na tevê. Obama tira uma foto vendo o jogo (só a foto, acredito, porque para quem gosta de basquete o futebol é muito chato) de olho nos eleitorados do sul dos Estados Unidos. Angela Merkel visita os alemães, a família real inglesa manda um representante para cumprir a agenda, a rainha da Bélgica se deixa fotografar torcendo. Os presidentes de Gana e Nigéria arranjam um jeito de pagar as dívidas com os jogadores (por lá, a corrupção no futebol é tanta que não dá para acreditar em promessas de cartolas).

Fizeram o dever de casa, todos eles. Por quê? Multidões apaixonadas podem deter uma guerra, Drogba provou isso na Costa do Marfim. Ou podem conduzir a uma guerra – e, neste aspecto, cada país europeu tem sua história para contar. Não dá para ignorar, nem para brincar, com a paixão.

Mas dá para fazer negócio. Arriscado, é verdade: a Espanha transformou em dinheiro a derrota e calcula em 600 milhões os euros que deixou de ganhar com a desclassificação. Mas, se der certo, os resultados serão melhores que a média, tanto para o encartolado da Fifa como para o vendedor de cachorro quente. É como operar a bolsa de valores. A pessoa pode ir, passo a passo, comprando e vendendo papéis seguros e ganhando pouco. Ou pode arriscar e ganhar muito ou perder tudo. Na bolsa, como no negócio do futebol, há um componente de risco alto, essência de paixão: você pode preparar a festa e depois ter que jogar tudo no lixo. Ou se divertir como nunca.

Sem razão, naturalmente. Puramente sensacional.

sábado, 21 de junho de 2014

Copa globalizada


É uma copa estranha. Em todas as transmissões, em todos os jogos, desfilam os nomes de clubes europeus, maiores ou menores. O que provocou um comentário de um leitor de Kfouri: não são os jogadores, mas o futebol que se joga lá que está distante anos-luz do que se joga aqui.

A partir desse comentário passei a assistir os jogos de outra maneira. Eu gosto de futebol e até hoje não entendo como é que o sistema escolar brasileiro – todo ele, todo – caminha de costas para esse esporte, preferindo outros jogos coletivos, num país onde uma criança aprende a chutar uma bola logo nos primeiros passos, às vezes antes. Eu gosto do jogo longo, da sua dificuldade, da parcimônia das regras e da possibilidade que premia tanto o esforço como o talento. E porque gosto de futebol passei a procurar, no conjunto das 32 seleções que estão por aqui, os sinais dessa diferença de anos-luz entre o primeiro e os outros mundos.

Bem, a maioria das seleções reúne jogadores daqui e dali, arrumados de alguma maneira em campo por um treinador competente. O treinador da Bósnia confessa que, na falta de jogadores, teve que caçar pelo mundo craques que tivessem antepassados bósnios recentes e se ater com o que conseguiu. Mesmo a humilde Costa Rica tem parte de seus jogadores atuando em clubes europeus. O resultado é que quase todas as seleções apresentam desníveis internos severos que aparecem de repente na perda incrível de um gol feito, na incapacidade técnica de controlar a bola, na cabeça baixa do jogador titubeante e no frango engolido por um goleiro surpreso.

Mas o comentário também me levou a uma outra estranheza: é uma copa latina de futebol europeu. Os comentaristas falam em escolas de futebol, mas o que tenho visto é um padrão. Esse padrão é pragmático e eficiente; é tolerante com o anti-jogo para parar o adversário; considera a falta como indispensável em determinadas situações; e chama de agarra-agarra o verdadeiro vale-tudo nas cobranças de escanteio.

Em futebol o feio é perder?

Se assim fosse alguns times não teriam mais torcedores. No entanto as fiéis continuam emprestando seu prestígio e comprando ingressos para ver derrotas, empates, uma ou outra vitória. Por isso acredito que em futebol o feio é não jogar. As vaias contra os times e seleções que ganham tempo e se fecham na defesa me fazem crer que a maioria também pensa como eu.

E aqui volto ao tema: cadê a escola latino-americana do futebol? Cadê aquele futebol rápido, envolvente, às vezes catimbeiro e às vezes brilhante, em que o preparo e o vigor físicos do jogador não são usados para impedir o outro de jogar, mas para impor a própria técnica sobre o adversário? Cadê a escola asiática, que usa a velocidade para compensar a estatura e pouca massa muscular?  Serão assim tão anos-luz piores da europeia?

Tenho a impressão que o que estamos vendo hoje no Brasil é somente mais um aspecto da globalização: uma elite mundial do futebol, que joga na Europa e que, eventualmente, veste a camisa do país onde nasceu ou tem raízes, para se apresentar em uma composição diferente da habitual num mega-evento.

O que, de fato, está a anos-luz do futebol que jogamos por aqui. Porque não tem paixão alguma rolando dentro de campo. Só na torcida.





domingo, 8 de junho de 2014

Porque só agora?


O decreto 8.243 seria mais um entre muitos que a presidente assina diariamente se não fosse esquisito. Num resumo de três linhas, esse decreto cria uma estrutura federal de conselhos deliberativos e uma ouvidoria geral da União, destinadas a organizar e controlar políticas públicas, sob o pomposo título de Sistema Nacional de Participação Social.

O decreto é esquisito por várias razões. A primeira delas é a incoerência. Quando na oposição, uma das principais bandeiras da esquerda e, como o PT era de esquerda, desse partido também, era justamente a criação de conselhos deliberativos em todas as estruturas de Estado. Ao chegar ao poder, o PT não criou conselhos deliberativos, criou fóruns. A razão é muito simples: o conselho deliberativo tem poder de mando, determina onde e como deve ser gasto o dinheiro público. O que entra em conflito com tudo: a legislação, que, em muitos casos, é detalhista quanto aos gastos públicos; o poder legislativo, a quem compete a definição de gastos por meio do orçamento; e o próprio executivo, frequentemente travado por uma oposição caseira e intestina, nem sempre bem intencionada. O fórum é consultor. As pessoas opinam, mas a competência da decisão é preservada para quem de direito.

Agora, em fim de governo, Dilma resolve ressuscitar os conselhos deliberativos.

A segunda esquisitice vem da participação social. O uso desta expressão é estranha. Pois, afinal, a maior participação social, a essência democrática, o eixo onde repousam os valores de um país não autoritário é o voto universal. Ao votar, o eleitor delega ao escolhido – seja o executivo, seja o seu representante no parlamento – a tarefa de se informar, avaliar, aprovar ou desaprovar todas as propostas que envolvem o viver em sociedade. O eleitor não terá tempo de se debruçar sobre uma proposta de usina nuclear, por exemplo, e nem conhecimento técnico para aprová-la ou desaprová-la. Seu representante é pago para procurar opiniões, assessorias, informações, avaliar o benefício da energia gerada e o custo ambiental e, finalmente, tomar uma decisão. O país inteiro se envolveu na discussão em torno dos campos de petróleo do pré-sal. Milhares de pessoas deram opinião, usando o seguro canal do Congresso. Isso é participação social num país continental como o nosso; a decisão sobre o pré-sal foi tomada e executada com consciência democrática. Ademais, as pessoas realmente querem sair de seus cuidados para dar palpites na coisa pública? O vazio das audiências públicas, hoje obrigatórias para vários temas, particularmente o licenciamento ambiental; e as eleições para os conselhos tutelares mostram que não (aposto que a maioria das pessoas que estão lendo esta crônica nem sabe que existem eleições para a escolha de membros dos conselhos tutelares). O exercício político é a verdadeira participação social. Tentar reduzir esse exercício a um sistema é demonstrar um desconhecimento profundo do funcionamento da democracia. Ou coisa pior – negá-la.

Às vésperas de uma eleição, o que Dilma quer com isso? Acalmar setores de esquerda para viabilizar alianças ou esvaziar discursos, ou talvez garantir espaços no próximo governo que não seja seu?

A terceira esquisitice vem do instrumento legal utilizado. Um decreto. Parece até que voltamos ao tempo do decreto-lei, esta aberração da ditadura. Para fazer caber o tal sistema num decreto, ele foi restringido aos órgãos do governo federal. E, aí, ignorando solenemente as instâncias parlamentares, cria-se, paralelamente a cada órgão federal, conferências, conselhos, comissões, mesas de negociação e que tais – uma superestrutura formidável de despesas. Essa superestrutura já funciona em dois setores do governo: os ministérios da Saúde e do Meio Ambiente. Comissões, conferência nacional e audiências públicas. O resultado prático e objetivo? Toneladas de papel, milhões de horas de reunião e uma ou outra norma realmente importante no meio de muita enrolação. Porque há limites administrativos que não podem ser ultrapassados, e o principal deles é financeiro: qualquer um de nós, governantes inclusive, adoraria que o país estivesse interligado por ótimas estradas, portos, terminais, aeroportos, fibra ótica, navegação segura. Mas o paciente é grande e o lençol é curto. Não dá para todos de uma só vez.

Um decreto estabelecer participação social? Excluindo da discussão, de cara, a representação legítima da sociedade, que é o Congresso Nacional? Excluindo da discussão, de cara, aquilo que o próprio decreto define como sociedade civil: “o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações”. (Aliás, uma outra esquisitice: a palavra “coletivos”, que há não muito tempo apelidava ônibus, e, agora, pelo visto, designa outra coisa que não sei o que é).

Há mais um bocado de esquisitices de conteúdo nesse decreto; mas não vou entrar nesse conteúdo, porque é assunto para juristas. Só volto a perguntar: porque agora? Porque só agora?
 
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Há uma petição para o Senado pedindo a aprovação de projeto do senador Álvaro Dias para que o Congresso declare nulo o decreto. Para assinar, o link é: http://www.citizengo.org.