domingo, 30 de março de 2014

O crepúsculo e a Petrobrás


Eu saíra do colégio direto para a escadinha do cais. Cursava então o ensino médio e nem me apercebia que o berrante uniforme do Santa Rosa (pus e sangue, era como as garotas do Gentil qualificavam) chamava muita atenção. Caía a noite e do alto falante a música veio, para ficar para sempre gravada em minha memória:

Ouro negro que jorra da terra
do Brasil a grandeza serás
pelo valor da riqueza que encerras
Petrobrás, Petrobrás, Petrobrás!

Adivinharam, era um comício em defesa da Petrobrás. Eram os anos 1960, o país fervia. Eu fora ali sem licença e correndo risco, se alguém me denunciasse no colégio: as freiras eram muito rigorosas sobre o que as alunas faziam quando de uniforme. Ouvi outra música (A Petrobrás foi a nossa vitória, nossa primeira vitória!), vi as bandeiras vermelhas dos comunistas e nem me apercebi que o comício era deles. Eu sabia o que era a Petrobrás e Monteiro Lobato, n’O Sítio do Picapau Amarelo me ensinara o valor do petróleo. Mas nada além disso.

Eu saí logo, a noite apenas começara, mas a desculpa que dera em casa para chegar um pouco mais tarde tinha prazo para vencer. O comício terminou em pancadaria, como muitos daquele tempo, entre o pessoal do Sindipetro e o CCC - Comando de Caça aos Comunistas, uma organização civil de ultradireita. A polícia separou a briga, prendeu uns e outros, soltou os uns porque Jango ainda estava no poder e os outros porque eram filhos d’algo. A Petrobrás ficou indelevelmente ligada na minha memória a uma profunda emoção em que se misturam o civismo e a magia do crepúsculo.

Agora eu vejo a Petrobrás num outro crepúsculo, este, sem beleza alguma. Nestas sombras se sobrepõem aos rostos corruptos as caras quebradas e ensanguentadas dos que apanharam na rua para constituí-la e mantê-la. Ela está sendo liquidada: em 2008 valia 510 bilhões de dólares; hoje, vale 200 bilhões e valerá cada vez menos se continuar com a administração desastrosa que tem. O caso da refinaria de Pasadena – uma compra superfaturada que torna ridículas as multas aplicadas a gestores municipais pelos Tribunais de Contas por causa de dois ou três mil reais não corretamente justificados – é só a ponta de um edifício de corrupção. A ele se soma o calote do governo (que obriga a estatal a vender combustível com prejuízo, sem subsidiar a diferença) e um aparelhamento partidário da gestão. A Petrobrás está mal, num processo descendente, crepuscular.

Estamos meio século distantes daquele comício na escadinha do cais, o país mudou, a sociedade mudou e o papel que a Petrobrás deve desempenhar mudou. Ainda se apela para a emoção ao falar da empresa (é só analisar os anúncios da tevê) mas ela é agora uma gigante mundial do petróleo. E é assim que deve ser administrada, não como uma simples ferramenta antinflacionária. Se o governo quer manter o preço dos combustíveis baixo, pague. Não desvalorize uma das maiores empresas do mundo. Não desperdice o patrimônio construído com muito esforço – e, literalmente, com sangue derramado.

Este sangue derramado não pode se misturar à lama da corrupção que apodrece os frutos de tantas lutas. A Petrobrás precisa de uma faxina em regra. O Brasil precisa da Petrobrás limpa, valiosa, corretamente gerida e capaz de manter aceso o patriotismo que a gerou e o civismo que a construiu.