domingo, 20 de julho de 2014

Nós, os vira-latas


Eu não tenho complexo de vira-lata. Eu sou um vira-lata. Indivíduo mestiço, sem qualidades especiais e sem dotes refinados. Um entre milhares, centenas de milhares, milhões. Tenho um nome pelo qual me chamam e ao qual atendo. Meu lugar no mundo é circunscrito e sonho frequentemente com não me preocupar com o que vou comer amanhã, depois que resolvi o alimento de hoje. Às vezes consigo sair, por pouco tempo, dos limites geográficos onde estou radicado: uma escapada de uns poucos dias, porque não dá para ir mais adiante.

Nós, os vira-latas, somos conhecidos pela enorme capacidade de sobrevivência: nós nos contentamos com pouco, migalhas de mesas opulentas, uma sobra de carne num osso, uma água mais ou menos limpa, e, num dia qualquer de muita sorte, aquela ração reforçada. E resistimos, meio doentes, meio sarnentos às vezes, mas vivemos.

Também somos conhecidos pelo barulho. Mas, veja você: sem grandes presas ou força bruta de ataque; sem beleza ou exotismo que nos ponham num pet shop ou num colinho confortável; sem porte que impressione, o que nos resta é o alarme. Latimos de alegria, às vezes, mas, quase sempre, é para avisar que alguma coisa está errada, que alguma coisa nos assusta, nos fere, nos adverte do ruim. Latimos para nos defender, para alertar os demais, para que nos vejam. Porque individualmente somos insignificantes, perdidos na multidão: se não latirmos, não ganharemos afagos, ou os elefantes não nos verão e podemos ser esmagados.

Mesmo assim, latimos menos que alguns cães de pedigree: os terriers, ou os pequineses, por exemplo. Esses latem por nada, para ouvir a própria voz, creio eu. São nervosos, correm para lá e para cá sem motivo. E latem até para as formigas.

Somos capazes de ações heroicas, de fidelidades até insensatas, de seduzir com o olhar, de inspirar amor e ódio e também de engodos, covardias e traições. Também somos capazes de ultrapassar o sofrimento com rapidez e de nos ajustar ao terror que possam nos causar. Diante do mais forte, geralmente nos encolhemos e esperamos. Aprendemos da forma mais dura que atirar-se à luta em desvantagem só se justifica quando a ameaça é mortal. Vejam o que está acontecendo com os pitbulls, rottweiler e os dobermanns, que atacam qualquer coisa de qualquer jeito: querem até exterminá-los!

Essa paciência em esperar o momento certo é uma de nossas características mais importantes. Com ela, nós vigiamos os descuidos e conseguimos nacos melhores. Com ela, escapamos de armadilhas. Com ela, conseguimos até ficar silenciosos por algum tempo. E é por ela, também, que latimos e latimos e latimos quando sentimos que as coisas estão mal para o nosso lado. Precisamos latir para ter paciência.

Porque, quando as migalhas desaparecem e a necessidade aperta, nós, os vira-latas, exercemos uma outra das nossa capacidade, herdada dos tempos de selva: nós nos agrupamos e nossas matilhas conseguem instilar o medo que nós, individualmente, não conseguimos provocar. Não é uma coisa que gostemos de fazer. Preferimos o caminho pessoal e livre, competindo entre nós pelo pão de cada dia, mas fazendo o que nos dá na telha. Nossa longa história de sobrevivências nos ensinou que as matilhas costumam agir numa espécie de embriaguez desesperada, e isso não é bom. Costuma ser mortal para muitos. A matilha é nosso recurso extremo, mas ela está lá, guardada em nossa memória ancestral. Sabemos formá-la e a consciência dessa sabedoria nos deixa mais prudentes ainda. Porque pesamos as consequências dela.

Muitos torcem o nariz para nós, porque nos consideram insignificantes e porque pensam eles que nossos latidos são insensatos e não têm razão de ser. Mas isso, que deveria nos diminuir perante nossos próprios olhos, acaba sendo para nós outro recurso de sobrevivência: por ignorar nossos latidos, nossa viralatice, a caravana passa – e segue para o precipício. Ou para a boca da matilha.