domingo, 26 de outubro de 2014

A cara do Brasil


Na salada de comentários sobre a campanha eleitoral que termina, retiro dois ingredientes comuns aos partidários do amarelo ou do vermelho: a catástrofe que acontecerá se o outro lado vencer; e a consideração de que esta foi a campanha mais lamentável, nojenta e baixa de que se tem notícia.

A isto somo a minha experiência. Participando da política há mais de 50 anos, do grêmio estudantil à UNE, do jornalismo ao PSDB, passando pela ditadura, pela constituinte, pela oposição e pela situação, já vi boi voar e gafanhoto dar leite. Há sempre quem preveja uma catástrofe na vitória alheia e quem ache que a campanha foi suja demais. Não é a minha opinião.

Creio que o bem maior é a liberdade democrática e, nela, a alternância no poder é essencial. Há países que mantém por décadas o mesmo partido, ou o mesmo sujeito, na direção; nenhum deles tem boas histórias para contar no final desses longos períodos. Às vezes, como na Alemanha, um espetacular resultado econômico cobra seu preço; às vezes, como em Portugal, os cravos se descobrem sem canteiros suficientes. Uma campanha eleitoral é um complexo fenômeno sociológico com começo, meio e fim. O processo tem tantas variáveis e tantas implicações que não se pode definir, como querem muitos dos que escrevem, o que acontecerá depois. Há consequências, por certo. Mas muito poucas são previsíveis.

Quanto à sujeira, o que vi nesta campanha só diferiu das outras pela extraordinária abertura política proporcionada pela internet. Milhares de pessoas – talvez isto chegue à casa do milhão – deixaram de ser espectadores para interferir diretamente. Para mim, isto é uma novidade muito boa: prepara terreno para o fim dos donos do povo, aquelas pessoas que rotulam toda e qualquer opinião contrária ao que pensam como antipovo. Ora, o povo é um ente abstrato e, assim, não tem necessidades, nem demandas, nem interesses. Quem tem necessidades, demandas e interesses são as pessoas e estas estão preferindo posicionar-se, usando largamente os recursos do teclado e dos canais virtuais para dizerem exatamente o que pensam, gostem ou não gostem os demais.

A boataria solta é típica e característica das campanhas eleitorais. A novidade desta foi a velocidade de circulação. Desinformar e destratar o adversário são instrumentos usados desde que Davi depôs Saul e tomou o poder em Israel. A natureza humana continua a mesma. Desta vez, entretanto, milhares de pessoas resolveram fazer o mesmo.

Abro uma exceção para o que aconteceu aqui no Pará. Na reta final da campanha tive a sensação de voltar às eleições dos anos 1950, nos duelos entre “A Folha do Norte” e “O Liberal”, este então órgão oficial do PSD e o outro ligado à UDN. Como agora, o jornalismo passava longe das páginas, transformadas em coletâneas de ofensas e desinformação. Os nossos dois principais jornais vão pagar caro, em descrédito, pela desconfiança que incutiram nos leitores. A palavra na telinha do telefone ou do computador desaparece fácil; a palavra impressa permanece.

Outro lamento faço para a Justiça Eleitoral, que está jogando fora uma longa tradição: a de viabilizar com a máxima imparcialidade o pleito. Espero que a postura censora que os juízes tomaram, a partir de decisões e discussões no TSE (particularmente uma sessão em que os ministros deitaram falação sobre como devem ser os programas eleitorais) seja apenas um surto passageiro. As principais funções da Justiça Eleitoral são evitar fraudes, homologar e fazer cumprir as pactuações entre as correntes políticas para que se faça a eleição. Ela já se mete demais em regulações (muitas, prejudiciais aos partidos pequenos) e, a continuar desse jeito, vai acabar inviabilizando a multiplicidade essencial para equilibrar o radicalismo, caminho natural do confronto entre os grandes partidos.


Mas, no geral, essa campanha fugiu à regra porque foi emocionante: não houve nenhum ungido de Deus, nenhum salvador da Pátria, nenhum polarizador inconteste. Homens e mulheres discutiram o que quiseram e como puderam, fizeram proselitismo, escolheram as virtudes e defeitos de candidatos sem mística alguma. O Brasil mostrou a sua cara, essa é que é a verdade. E, se houve muita lama atirada nessa cara, houve também um enorme esforço cívico, livre, leve e solto, para decidir o caminho do futuro.