sábado, 15 de novembro de 2014

A tarefa mais importante


Alexandre Grothendieck morreu há dois dias. Ele era um cientista – daquela linhagem muito especial de cientistas que não se limitam à sua disciplina, mas alcançam a filosofia por uma via própria, longe da formatação universitária. Um dos mais importantes matemáticos do século XX, que redescobriu sozinho a relação entre a circunferência e seu diâmetro aos 11 anos, num campo de concentração nazista, queria que o esquecessem – mas, como? É dele o trecho que transcrevo a seguir, em tradução livre. Foi escrito para uma conferência em Paris, em junho de 1970, sob o título “A responsabilidade do cientista (savant, no original) no mundo de hoje”. E transcrevo porque se aplica ao Brasil de hoje e porque acredito que essa responsabilidade, se é principalmente dos acadêmicos, é também de todos e cada um neste momento brasileiro:

Questiona-se por todo o mundo os diversos perigos que ameaçam esta ou aquela comunidade humana, grande ou pequena. No ocidente capitalista é o espantalho do “perigo comunista” que ameaçaria a liberdade da pessoa e os valores de uma certa cultura burguesa (...). Às vezes acentua-se o “perigo asiático” (já um dos motivos recorrentes do hitlerismo antes da guerra) ou o “perigo amarelo” que ameaçaria a herança cultural do ocidente. (...) Nos países comunistas invoca-se o “perigo imperialista” que ameaçaria as conquistas do proletariado. Outros “perigos”, por serem mais localizados, não deixam de turvar menos a consciência de uma fração não negligenciável da humanidade, e servem de motivação ou pretextos para muitas injustiças e crueldades: o “perigo negro” na África do Sul ou no sul dos Estados Unidos, o “perigo sionista” nos países árabes ou o “perigo árabe” em Israel, para citar alguns.

O observador desse novelo de “perigos” complementares, aparentemente bem específicos e mutuamente contraditórios, não pode deixar de ser atingido por sua extraordinária semelhança de fundo, e a identidade deveria dizer-lhe: em cada caso é sentida e denunciada como “perigo” a existência ou expansão (efetiva ou imaginada) de um grupo humano percebido como diferente do grupo de origem, seja esta distinção de ordem religiosa, linguística, étnica (“racial”) ou econômica, ou política (i. e. concernente à organização da sociedade).

(...)

Pode-se chamar, por oposição à tendência “atávica” que acabamos de descrever, a tendência “racional” ou “ética” nas relações entre os grupos. Na sua forma mais evoluída, ela resulta no conceito de solidariedade essencial entre os seres humanos, quaisquer que sejam os grupos a que pertençam, conceito que pode ser encontrado já em antigos pensadores, anteriores à nossa era (p. ex. Lao Tse, Buda, e outros). O aparecimento dessa tendência “racional”, preliminar indispensável à formação de sociedades civilizadas, deve sem dúvida ser vista (juntamente com a linguagem) como a conquista mais importante do espírito humano – conquista que está longe de ser completa, como acabamos de ver. Deveria ser possível, numa abordagem dessas, ver a história da humanidade como a história da luta até agora incerta entre essas duas tendências opostas nas relações entre os grupos humanos.

(...)

Por esta razão, a tarefa mais importante e a mais nobre que se coloca para os homens é a liquidação deste reflexo ancestral, e a plena realização da solidariedade inelutável que liga entre si todos os homens, quaisquer que sejam os grupos humanos aos quais pertençam.

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Para saber mais sobre o pensamento (ou, quem sabe!, a matemática) de Grothendieck, procurar por Grothendieck circle na internet. Lá estão depositados seus principais escritos, entre os quais a conferência de onde foram retirados os trechos transcritos.


domingo, 9 de novembro de 2014

De reforma e de chacina


No final do segundo turno das eleições a Folha de São Paulo publicou um mapa relacionando votos e renda média municipal. De si mesmo, esta relação não significa nada. Mas trouxe para discussão o grau de dependência das populações para com as transferências diretas da União (previdência social, bolsas e auxílios) e revelou, pela primeira vez de forma fácil, a brutal pobreza das populações da Região Norte. Só para se ter uma ideia, a renda média municipal em Belém é pouco superior à menor renda média municipal no Rio Grande do Sul e menos da metade da renda média municipal de Porto Alegre.

Depois, muito se falou sobre país dividido. Sobre voto atrelado. Sobre população pobre e população rica. Sobre nordestinos e sulistas. Sobre preconceito. Mas, cuidadosamente, políticos e jornalistas evitaram a questão principal: o modelo de arrecadação e distribuição tributária. Este modelo, implantado na ditadura, despeja nos cofres da União 70% das receitas e nas costas dos estados e municípios 70% das despesas constitucionalmente obrigatórias.

Essa repartição de receitas está na base da incapacidade das prefeituras em resolver problemas, é o poço de onde os Estados tentam, em vão, sair, responde pela brutal pobreza das populações das regiões não industrializadas, torna o Norte cada vez mais periférico do Brasil. Os municípios cada vez mais dependentes da boa ou má vontade do governante de plantão. As populações penduradas na corda bamba da previdência e dos auxílios federais.

Na outra ponta, o excesso de dinheiro na União cria distorções terríveis. Eu penso nisso quando constato que Itaipu paga 22 mil reais por mês para cada membro do seu Conselho de Administração, que se reúne uma vez por semestre – e nós, nortistas, acabamos de receber um tarifaço na energia. Quanto à corrupção, nem é preciso comentar. Os bilhões desviados tornam incongruentes as denúncias formalizadas contra gestores municipais que merendaram alguns milhares de reais...

Agora se estabelece uma perfunctória discussão sobre reforma política. Escreve-se sobre plebiscito e referendo, como se isto fosse fundamental. Mas sem uma reforma tributária verdadeira qualquer reforma política será um simples remendo em pano velho: mais buracos no tecido.

Buracos como os de bala que se alojaram nas vítimas da noite de terror vivida em Belém. Eu não compreendo porque o que está evidente – Belém está mergulhada na guerra suja do tráfico de drogas – não é dito. Talvez porque não haja solução possível, a curto prazo, para resolver o problema, será? 

A defasagem entre o tráfico (que usa endereços ocultos na rede Tor, na internet, para a venda de drogas, redes sociais e black-blocks para espalhar o pânico), e o aparato policial, retido no tempo em que as rondas motorizadas eram o máximo de eficiência possível, é tão brutal como a nossa pobreza. E essa brutalidade transforma em banalidade o assassinato a sangue frio.

A mentalidade formada na ditadura recomendaria “o controle das redes”. Mas o que resolve é a inteligência no uso delas. Usar a inteligência demanda mais do que coletes à prova de balas e pistolas: envolve acesso a tecnologias e, sobretudo, mudança de métodos e práticas, a qual não acontece milagrosamente nem por acaso. É fruto de um esforço complexo em que a renda média da população tem papel importante: é preciso ter esperança no futuro para dar valor à vida, arriscá-la menos. Sair da máxima pobreza com um só salto, mesmo que se corra o risco de levar um tiro mortal nesse salto, é tentação forte demais para quem não tem perspectivas, mas tem coragem.

Devolver a renda dos estados e municípios, usurpada na ditadura, é também devolver essa esperança e permitir a inteligência.