quinta-feira, 19 de março de 2015

Um olhar à direita


Supreendeu-me ver, entre os muitos e variados vídeos e fotografias das manifestações do dia 15 de março, um estandarte azul. Estandartes são símbolos antigos; quem o usa, é tradicionalista e ultraconservador. Ou seja, é de extrema direita.

Na mesma manifestação, em outro local, foi preso um grupo autodenominado de “carecas do subúrbio”. Neonazistas... negros?! Este episódio me surpreendeu mais ainda. Menos pelo paradoxo (Perdoa-os, pai, eles não sabem o que fazem!), afinal, o nazismo é eugênico, e porque não pode ser negro?, que pelo subúrbio, pela presença em redutos reivindicados pela esquerda.

Ora, a extrema direita parecia ter sumido do cenário político brasileiro. Mesmo assim, eu não deveria estar surpresa, porque nos últimos anos tem havido indícios claros, cada vez mais frequentes, de um ressurgimento: algumas prisões de “carecas”, depois de atos violentos; os atentados contra mendigos, índios, meninos de rua; conteúdos cada vez mais ousados em blogues; disseminação de terrorismo virtual. E, nas últimas eleições, a votação recebida pela assim chamada “bancada da bala” apresentou um poder de fogo razoável. Aliás, segundo os analistas, o resultado da eleição parlamentar apontou um rumo de centro-direita para o país.

Mas uma coisa é a direita moderada, liberal, dos ACM e dos Mainardi, e outra coisa é o fundamentalismo extremista que caracteriza essa direita ultraconservadora. Ela é sempre violenta, intolerante, incapaz de diálogo. Guerra é uma palavra que anda sempre presente em suas conversas. Se pudesse, teria escravos... e às vezes tem, que o diga a Polícia Federal que, volta e meia, liberta pessoas reduzidas a condição semelhante à do escravo.

O fato de sentir-se segura o bastante para mostrar a cara, apresentar de público estandartes e desafios, reivindicar claramente um golpe de estado, demonstra que não está sendo tão repulsiva assim para muita gente. Está conseguindo seduzir.

Qual é a sedução da ultradireita?

A solução pela força. A ordem unida, um-dois, um-dois. A criação de uma zona de conforto, sem inquietações, porque sem críticas. A abdicação das decisões e, portanto, uma falsa ideia de inocência. A supervalorização do “nós” em relação a todos os outros “eles”.

A extrema direita sempre se fortalece quando há fraqueza institucional. Sempre.

Ela recrudesce os discursos quando há instabilidade. Ela oferece o lenitivo da violência: elimine a oposição e a crítica e você terá paz.

Ela se baseia no discurso da superioridade e do egoísmo: não queremos imigrantes por aqui; não queremos concorrência; não queremos contradições. Não balance o barco.

Ela é mortal. Ela mata o que atrapalha e, muitas vezes, quem não pode se defender.

Mas ela não pode ser ignorada. Também não pode ser superdimensionada (ela era minoria, bem minoria, nas manifestações). Tem que ter voz, para que seja forçada a agir às claras. Tem que ser medida e acompanhada.

Para contê-la nos limites que lhe proporciona a democracia é preciso não alimentá-la. E, infelizmente, depois do que aconteceu no dia 15, Brasília está lhe dando filés.

Primeiro, a presidente vai à tevê com uma atitude mais ou menos assim: Eu sou humilde. Estou dizendo que sou humilde. Vai encarar?

Ela relembra sua luta contra a ditadura e presta homenagem aos que morreram. Ela pode chorá-los, mas não os respeita: se respeitasse, não permitiria que ladrões se apropriassem do país reconstruído. Se respeitasse, demitiria os fichas sujas de seu ministério, antes de pedir ao Congresso que vote uma lei para isso; afastaria de seu convívio pessoas suspeitas. Se respeitasse, não permitiria as ameaças sobre a Petrobrás, nem mentiria na campanha. Se respeitasse, não teria um projeto de poder, mas um projeto de Brasil. Porque era este o projeto daqueles que morreram.

Segundo, o Congresso Nacional propõe um remendo político que chama de reforma. E põe mais dinheiro nos partidos, triplica o fundo partidário num ano em que é preciso reduzir, não aumentar, o gasto público. Pôs nos partidos o que foi cortado nos investimentos indispensáveis. Quer fazer uma maquiagem num sistema eleitoral ruim, posto sob suspeita nas últimas três eleições. Quer fazer prédios anexos quando faltam estradas. Nenhuma discussão sobre o fundamental: as prefeituras completamente falidas, situação de que nem São Paulo escapa.

Terceiro, o Supremo Tribunal Federal começa um jogo de cena no petrolão. Acende o forno para a pizza. O país inteiro suspeita de Teori Zavaski, mas não interessa: é esse mesmo que vai por a mão na massa.

O cidadão olha para Brasília e não vê saída alguma; ele baixa os olhos para a rua onde está e enxerga o assaltante parado na esquina, só esperando ele passar. Sua exasperação é exatamente o que a extrema direita quer.

Então não há porque se espantar se negros, beneficiados com a política de cotas (que eu, aliás, apoio integralmente) se apresentam como neonazistas. Eles não são uns coitadinhos. Eles, como qualquer outro cidadão, querem respeito e respostas.

Que ninguém se espante, também, se esta crise se tornar mais aguda, com cada vez mais frequentes apelos a um governo de força. Mas é preciso resistir a essa sedução. É preciso ver os gulags que estão por detrás, os efeitos da censura pelo tempo afora. É preciso ter sempre consciência que, para quem ouviu o canto da sereia vem a morte cruel pelo afogamento.

E é preciso cobrar dos três poderes mais vergonha na cara.



domingo, 15 de março de 2015

O Brasil mudou, companheiros!


Metade da população brasileira faz parte da classe média (renda individual mensal de 320 a 1.120 reais). Esta informação é do Data Popular e foi divulgada pela revista “Exame” em meados do ano passado. A Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE apresenta resultado semelhante: metade das famílias brasileiras tem renda entre 2 e 10 salários mínimos por mês
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Acostumados à fácil dicotomia ricos x pobres, muitos não conseguem vê-la. Alguns intelectuais chegam a desprezá-la (uma vez, Marilena Chauí desmereceu sua biografia ao chamar essa categoria de medíocre). Essa classe média é tanto urbana como rural. Ela inclui o pequeno empresário agrícola, o caminhoneiro autônomo, a esmagadora maioria de profissionais liberais, o micro e o pequeno empresários, os assalariados com nível médio ou superior e uma quantidade enorme de trabalhadores autônomos.

Ela não gosta de confusão. Trabalha duro, não entende nem gosta de se meter em política e paga tudo de que se serve: hospital, escola, serviços profissionais, empregados, alimentos, lazer, água, energia, estacionamento, casa e todas as compras, além das tarifas de bancos e cartão de crédito. E paga impostos, muitos impostos. Para ela não há isenção de IPTU, nem de imposto de renda, nem facilidades outras. Ela está acostumada a pagar e a cobrar.

E ela é emergente: foi só depois da estabilização da moeda que ela conseguiu se firmar e fazer o que todo cidadão de classe média, no mundo todo, faz: planos de médio e longo prazos, impossíveis quando a inflação anda alta. A partir do real ela se consolidou, cresceu, e agora abrange 54% da população.

Foi essa nova classe média que foi para as ruas, ontem. Os manifestantes se reconheciam, pela primeira vez na história do Brasil, como classe: havia alegria entre eles. Sua reinvindicação central, me parece, foi recuperar a dignidade de ser brasileiro. Por isso, o ponto de união foi o Hino Nacional, o verde-amarelo, a bandeira.  A dignidade é importante para a classe média: seus integrantes se sacrificam para ter uma aparência limpa e bonita, para manter as contas em dia, para não se envolver com polícia, para resgatar as dívidas e para não receber esmolas.

A classe média se sente lesada, assustada e envergonhada. Ela concordou com as políticas sociais, mesmo sabendo que financiava boa parte delas; ela concordou com as políticas de quotas, concordou com as bolsas variadas e diversas. Mas, volto a dizer: ela também está acostumada a cobrar. E, se paga alguma coisa para uma certa finalidade, é para essa finalidade que o dinheiro tem que ir. Então, pagar para que o dinheiro flua para outros destinos não é com ela: a corrupção lhe dói no bolso como se fosse um assalto direto.

Ela também está assustada com a possibilidade de descontrole inflacionário. Ela sabe – todos sabemos – que aumentar insumos, como energia, combustível e salários, forçosamente refletirá nos custos inflacionários. Que o aumento do dólar não significa apenas custos mais altos em viagens, mas, e sobretudo, num país que importa ou paga royalties por quase tudo o que usa para mover suas máquinas, custos de produção mais altos, que refletirão no custo de vida. A classe média é medianamente instruída e informada. Ela sabe o que move a economia.

E se sente envergonhada pela escala de corrupção, institucionalizada (como disse um dos delatores do petróleo), que se instalou no país. Os gritos de “Fora, Dilma”, mais que tudo refletem essa vergonha, e resultam da incapacidade da presidente de deixar de manobrar para acobertar os ladrões.
    
Muitos articulistas têm insistido, na mal alinhavada defesa do governo Dilma, que ela está pagando o preço de um compromisso com os pobres, que é por defender os pobres contra os ricos que está sendo questionada; ou que, como eu li ontem, foi o Brasil bem cuidado que foi para a rua; ou ainda, como disse o infeliz ministro da Justiça, com temor refletido nos olhos, são os que não votaram na presidente que a estão criticando. Fariam melhor se encarassem de frente a verdade: que o Brasil tem uma poderosa classe média que não quer ser mais sangrada para beneficiar ladrões; que essa classe média não é contra políticas sociais, mas é contra a distorção dessas políticas, sua transformação em garrotes eleitoreiros; que não é contra pagar impostos, mas quer esses impostos usados corretamente. E que essa classe média é a metade dos cidadãos do país.

O Brasil mudou, companheiros.

E não será o governo propondo plebiscitos ou hipotéticos pacotes contra a corrupção que vai conseguir sair da armadilha em que se meteu com uma campanha mentirosa e ilusória. Até porque as manifestações da sexta-feira, 13, mostraram claramente a solidão social do PT. Vai ter que engolir a arrogância e negociar uma agenda concreta, clara, que precisa começar com uma reforma tributária que aumente a capacidade de governo dos Estados e Municípios, sem a qual não haverá reforma política que dê certo.